Ou: Carta a um certo professora da UFBA. Por Marta Peres Li n'O Globo' de ontem (01/05/2008): Antonio Natalino Dantas, coordenador da Faculdade de Medicina da UFBA, afirmou que 'o berimbau é um instrumento para quem tem poucos neurônios', o que seria uma evidência do 'QI' baixo dos baianos; manifesto assinado por 113 pessoas, iniciado ao se intitularem 'intelectuais da sociedade civil', é levado ao STF manifestar seu repúdio às cotas para negros e índios nas universidades públicas. Seja qual for o posicionamento de cada um a respeito do assunto, uma coisa é evidente: questionar o mito da 'democracia racial' brasileira é cutucar um formigueiro. Há racismo no Brasil, certamente, apesar do Ali Kamel, mas seu pilar fundamental é levantar a bandeira de que o Brasil não é um país racista... 'eu até tenho um amigo negro...' é o chavão que atravessa séculos, repetido pelo próprio Dantas, referindo-se à sua secretária. A 'chapa está quente' na UFBA, onde reitor e alunos repudiaram as declarações 'infelizes' do coordenador. Aproveitando o calor dos debates que enchem minha caixa de mensagens, nestes tempos, uma boa pedida é assistir ao espetáculo "Girakandombe", que faz parte do projeto Memória Corporal da Cultural Afro-Brasileira da 'Cia de Dança Contemporânea da UFRJ', dirigido por Tatiana Damasceno. Sobre um cenário belo e simples, desenrola-se um diálogo rico entre os bailarinos, ora em solos, duos, trios e grupos maiores, imagens do telão, sem excessos, e objetos cênicos. Gira é a Roda, em que santos e as entidades espirituais são cultuados pelo canto e pela dança. O verbo Kandombe quer dizer orar, rezar. O elemento central do espetáculo, desenhado no palco, é a encruzilhada, que remete à idéia de se optar por um determinado caminho - sabe-se lá quem seja o responsável por esta escolha, o indivíduo, o destino, forças superiores, Deus ... - instante em que se fazem presentes as energias de Exu e Ogum. Independentemente das crenças de cada um, quem não ergue os olhos para o céu quando se vê frente à necessidade de escolher entre um e outro, já que nos é impossível seguir por duas trilhas diferentes ao mesmo tempo? "Girakandombe" tem nas tradições afro-brasileiras o ponto de partida, mas o trabalho não se restringe a um mero inventário do material pesquisado. O gestual inspirado nos ritos afro-brasileiros serve como fio condutor para uma pesquisa consistente em dança contemporânea, o que justifica a eleição desta temática para o espaço do palco. Isto porque, se fosse somente o caso de se 'demonstrar' os movimentos, certamente, valeria mais a pena conhecer o rito em seu lócus, ou seja, num terreiro propriamente dito. O que caracteriza este trabalho como artístico é justamente o fato dele extrapolar a 'cópia' daquilo que já existe na religião - e que tem objetivos muito diversos que os de uma companhia de dança, e que 'vai muito bem, obrigado' -, para criar uma linguagem própria, relacionando a movimentação a questões existenciais, em especial, ao modo de estar no mundo nas metrópoles. A tão corriqueira travessia da Avenida Rio Branco que leva ao Largo da Carioca nos coloca diante de sentimentos difusos, entre a dúvida e a certeza que nos move a seguir, ou não, em frente. A discussão acerca das fronteiras entre cultura popular, manifestações religiosas e expressão artística é um campo bastante controverso onde não são raras acusações de apropriação indevida de elementos que, segundo os mais puristas, geralmente oriundos da antropologia, não deveriam ser 'retirados' de seu lugar de origem. Por outro lado, as inevitáveis influências européias e norte-americanas estão presentes nas construções artísticas de modo tão intenso que se torna um exercício difícil não cair na armadilha de 'naturalizá-las'. O virtuosismo atlético e geométrico dos bailarinos, somado ao olhar 'blasé', quando não triste, vazio, opaco, ou vidrado, vem se tornando uma presença constante (e incômoda) nos espetáculos de dança contemporânea e nos faz recordar muito mais referências estrangeiras que brasileiras. Não quero com isso defender uma idéia homogênea e redutora de 'brasilidade', mas o curioso é que, quando inspirado em elementos dos 'colonizadores', não se levanta qualquer objeção ao fato de estarem sendo, também, 'deslocados' de sua origem. Neste sentido, a cena cuja trilha sonora é constituída de palavras em inglês serve como uma provocação inteligente para refletirmos sobre o que, de fato, seria ou não 'nosso'. Além disso, pode ser que o fato dos bailarinos-criadores partirem de uma pesquisa, não somente de movimentos, mas também teórica acerca do conteúdo com que estão lidando, amplifique sua presença em cena e não lhes roube o prazer de dançar, expresso num olhar 'vivo'. Aos que criticam que se levem ao palco elementos propriamente culturais e étnicos, sob a justificativa do risco de perderem seu vigor, é preciso esclarecer que uma obra de arte, cujos objetivos são absolutamente diversos daqueles dos rituais religiosos, não visa, em momento algum, 'reproduzi-los', mas sim, utilizá-los, dentre outros, enquanto recurso, já que não existem receitas do que pode ou deve inspirar a criação artística. O rico caldo de referências culturais que nos constituem é um material instigante para a construção coreográfica. Müller refere-se às artes cênicas como um campo privilegiado para se transformar a vida em curso em matéria de fruição estética e reflexiva, ou seja, em obra de arte. Certamente, não se trata de uma tarefa fácil, incorrendo-se nos riscos de cair em clichês, de diminuir a potência de algo que perde seu sentido ao ser levado ao palco, ou de tornar um momento cansativo para o público arrependido de ter saído de casa. Felizmente, a Cia de Dança Contemporânea da UFRJ e Tatiana Damasceno 'acertaram a mão' na composição destes elementos. Quem sabe, se o Professor Dantas, da UFBA, racista assumido, assistisse a este espetáculo, onde o simples é complexo e intenso, e nem por isso é fácil, ele não fosse tocado a ponto de reformular seus conceitos a respeito de nossas raízes africanas e chegasse a reconhecer seu valor... Não, talvez já fosse querer demais... O espetáculo pode ser muito bom, mas, tem gente que só nascendo de novo... |
segunda-feira, 5 de maio de 2008
CRÍTICA DO ESPETÁCULO GIRAKANDOMBE
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