segunda-feira, 5 de maio de 2008

CRÍTICA DO ESPETÁCULO GIRAKANDOMBE

Ou: Carta a um certo professora da UFBA.
Por Marta Peres

Li n'O Globo' de ontem (01/05/2008): Antonio Natalino Dantas,
coordenador da Faculdade de Medicina da UFBA, afirmou que 'o berimbau
é um instrumento para quem tem poucos neurônios', o que seria uma
evidência do 'QI' baixo dos baianos; manifesto assinado por 113
pessoas, iniciado ao se intitularem 'intelectuais da sociedade civil',
é levado ao STF manifestar seu repúdio às cotas para negros e índios
nas universidades públicas. Seja qual for o posicionamento de cada um
a respeito do assunto, uma coisa é evidente: questionar o mito da
'democracia racial' brasileira é cutucar um formigueiro. Há racismo no
Brasil, certamente, apesar do Ali Kamel, mas seu pilar fundamental é
levantar a bandeira de que o Brasil não é um país racista... 'eu até
tenho um amigo negro...' é o chavão que atravessa séculos, repetido
pelo próprio Dantas, referindo-se à sua secretária. A 'chapa está
quente' na UFBA, onde reitor e alunos repudiaram as declarações
'infelizes' do coordenador.

Aproveitando o calor dos debates que enchem minha caixa de mensagens,
nestes tempos, uma boa pedida é assistir ao espetáculo "Girakandombe",
que faz parte do projeto Memória Corporal da Cultural Afro-Brasileira
da 'Cia de Dança Contemporânea da UFRJ', dirigido por Tatiana
Damasceno.

Sobre um cenário belo e simples, desenrola-se um diálogo rico entre
os bailarinos, ora em solos, duos, trios e grupos maiores, imagens do
telão, sem excessos, e objetos cênicos. Gira é a Roda, em que santos e
as entidades espirituais são cultuados pelo canto e pela dança. O
verbo Kandombe quer dizer orar, rezar. O elemento central do
espetáculo, desenhado no palco, é a encruzilhada, que remete à idéia
de se optar por um determinado caminho - sabe-se lá quem seja o
responsável por esta escolha, o indivíduo, o destino, forças
superiores, Deus ... - instante em que se fazem presentes as energias
de Exu e Ogum. Independentemente das crenças de cada um, quem não
ergue os olhos para o céu quando se vê frente à necessidade de
escolher entre um e outro, já que nos é impossível seguir por duas
trilhas diferentes ao mesmo tempo?

"Girakandombe" tem nas tradições afro-brasileiras o ponto de partida,
mas o trabalho não se restringe a um mero inventário do material
pesquisado. O gestual inspirado nos ritos afro-brasileiros serve como
fio condutor para uma pesquisa consistente em dança contemporânea, o
que justifica a eleição desta temática para o espaço do palco. Isto
porque, se fosse somente o caso de se 'demonstrar' os movimentos,
certamente, valeria mais a pena conhecer o rito em seu lócus, ou seja,
num terreiro propriamente dito. O que caracteriza este trabalho como
artístico é justamente o fato dele extrapolar a 'cópia' daquilo que já
existe na religião - e que tem objetivos muito diversos que os de uma
companhia de dança, e que 'vai muito bem, obrigado' -, para criar uma
linguagem própria, relacionando a movimentação a questões
existenciais, em especial, ao modo de estar no mundo nas metrópoles. A
tão corriqueira travessia da Avenida Rio Branco que leva ao Largo da
Carioca nos coloca diante de sentimentos difusos, entre a dúvida e a
certeza que nos move a seguir, ou não, em frente.

A discussão acerca das fronteiras entre cultura popular, manifestações
religiosas e expressão artística é um campo bastante controverso onde
não são raras acusações de apropriação indevida de elementos que,
segundo os mais puristas, geralmente oriundos da antropologia, não
deveriam ser 'retirados' de seu lugar de origem. Por outro lado, as
inevitáveis influências européias e norte-americanas estão presentes
nas construções artísticas de modo tão intenso que se torna um
exercício difícil não cair na armadilha de 'naturalizá-las'. O
virtuosismo atlético e geométrico dos bailarinos, somado ao olhar
'blasé', quando não triste, vazio, opaco, ou vidrado, vem se tornando
uma presença constante (e incômoda) nos espetáculos de dança
contemporânea e nos faz recordar muito mais referências estrangeiras
que brasileiras.

Não quero com isso defender uma idéia homogênea e redutora de
'brasilidade', mas o curioso é que, quando inspirado em elementos dos
'colonizadores', não se levanta qualquer objeção ao fato de estarem
sendo, também, 'deslocados' de sua origem. Neste sentido, a cena cuja
trilha sonora é constituída de palavras em inglês serve como uma
provocação inteligente para refletirmos sobre o que, de fato, seria ou
não 'nosso'. Além disso, pode ser que o fato dos bailarinos-criadores
partirem de uma pesquisa, não somente de movimentos, mas também
teórica acerca do conteúdo com que estão lidando, amplifique sua
presença em cena e não lhes roube o prazer de dançar, expresso num
olhar 'vivo'.

Aos que criticam que se levem ao palco elementos propriamente
culturais e étnicos, sob a justificativa do risco de perderem seu
vigor, é preciso esclarecer que uma obra de arte, cujos objetivos são
absolutamente diversos daqueles dos rituais religiosos, não visa, em
momento algum, 'reproduzi-los', mas sim, utilizá-los, dentre outros,
enquanto recurso, já que não existem receitas do que pode ou deve
inspirar a criação artística. O rico caldo de referências culturais
que nos constituem é um material instigante para a construção
coreográfica. Müller refere-se às artes cênicas como um campo
privilegiado para se transformar a vida em curso em matéria de fruição
estética e reflexiva, ou seja, em obra de arte. Certamente, não se
trata de uma tarefa fácil, incorrendo-se nos riscos de cair em
clichês, de diminuir a potência de algo que perde seu sentido ao ser
levado ao palco, ou de tornar um momento cansativo para o público
arrependido de ter saído de casa.

Felizmente, a Cia de Dança Contemporânea da UFRJ e Tatiana Damasceno
'acertaram a mão' na composição destes elementos. Quem sabe, se o
Professor Dantas, da UFBA, racista assumido, assistisse a este
espetáculo, onde o simples é complexo e intenso, e nem por isso é
fácil, ele não fosse tocado a ponto de reformular seus conceitos a
respeito de nossas raízes africanas e chegasse a reconhecer seu
valor... Não, talvez já fosse querer demais... O espetáculo pode ser
muito bom, mas, tem gente que só nascendo de novo...

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