quarta-feira, 11 de junho de 2008

A Sutileza do Diálogo

Apresento a todos um excelente texto tratando sobre a importância de um olhar sensível sobre o ensino e o aprendizado da técnica de dança da professora
Lara Seidler de OliveiraGraduação em dança pela UFRJ, Mestre em Ciência da Arte pela UFF e Professora Substituta do Departamento de Arte Corporal da UFRJ.
Atualmente membro do corpo Docente do curso de bacharelado em Dança - UFRJ
O texto precisou ser editado para poder ser publicado no blog, mas os interessados em saber mais sobre a pesquisa podem solicitar nos comentários, que nós enviamos o texto na integra

A Sutileza do Diálogo

O estudo se baseia numa discussão sobre as instâncias fabris e seus processos de abertura do corpo do artista-bailarino, demandando relações de diálogos entre as intensidades da força que exalam o avesso de corpos que se mutam em outros a cada momento da criação, seja na dança na pintura ou no teatro. É o diálogo da vida que se resume em um jogo de vivo-morto, na sutileza do gesto na dança.

Objetivos específicos:

1- Discutir o conceito de técnica de dança, a partir das análises de feitura e do fazer criativo, passando por um diálogo com os processos criativos da pintura, do teatro e da dança,

2- Repensar a técnica como um diálogo entre o domínio dos meios operacionais e a abertura do ser enquanto corpo de intensidade e sensibilidade,

3- Penetrar na sutileza íntima do corpo que se desintegra a cada instante técnico-criativo e se desvela em outro no processo da experienciação.

Problema da Pesquisa:

O estudo esbarra nos trâmites dos caminhos que tendem encobrir o corpo daquele que teima em se descobrir a cada gesto. Caminhos estes que se resolvem por dar margens de obstáculo a liberdade da escuta e da experiência dos espaços. Carcaças de cânones e modelos de execução, nem tão menos a deficiência da sutileza e da intensidade da ação em prol da intenção manca que cala cada vez mais em vez de se fazer ouvir, ou mesmo da tagarelice que ensurdece o próprio corpo daquele que quer deixar falar o corpo.

Como o diálogo da técnica aproxima o artista de si mesmo e de seu movimento, se os caminhos dos labirintos não são experimentados? Como o diálogo da técnica e da criação podem ser vistos como dois caminhos que se afastam se esses são entrecruzamento do corpo e do ser? Como são abertos os “buracos” daquele que se distende até revelar o íntimo, mais ínfimo órgão, que falece e renasce no instante?

Desenvolvimento:

A arte é um debate entre a imagem e o “nome”, entre o além da língua, entre o desejo, entre o sentimento e a retórica. Uma conjunção temporal: o presente e o passado e o futuro, entre o código e a imagem, entre o “já e o ter acontecido”. É o momento dinâmico, o momento verdadeiro, que segundo Ponty (1998), é com o que os filósofos contam, dentro de uma relação consigo mesmo e com o outro, não tendo sentido o sacrifício de um a qualquer dos envolvidos. A verdade corre simultaneamente por toda parte, correndo o risco de nunca estar inteiramente em algum lugar. O instante criativo, o presente-passado é para Pierre (2002), “irrupção incontrolável de imagens” que é concebida e destruída ao mesmo tempo.

A conjunção de presente, de passado e de futuro, entre a matéria e a imagem, é o instante de tempo, que revela o momento dinâmico, a duração onde tudo acontece: “Um espetáculo não é um livro, um quadro, um discurso, mas uma duração, uma dura prova para os sentidos...” (NOVARINA, 2005, p. 15)

. O instante criativo desencadeia uma “irrupção incontrolável de imagens” (JEUDY, 2002, p.16) que é concebida e destruída ao mesmo tempo.

O olhar por sobre as formas de manifestação gestual simbólica e expressiva na dança, é assim explicado por percorrer caminhos movediços, pois a matéria, forma concebida e que concebe, fluxo contínuo e essencial é aquele de que devemos nos ater: o que rege e é regido, num diálogo constante. Enxergar o movimento no tempo e espaço é poder se certificar da instabilidade de se conceituar ou formar uma receita do fazer, pois o artista, o pintor-bailarino, revela sua síntese disjuntiva que o permite percorrer inúmeras personagens, é ir além do elemento forma-corpo sem abandoná-lo; mas transfigurá-lo ou tornar visível sua força, é dar chance, também de se ouvir e deixar o corpo falar.

Isso corresponde dizer que nas artes, seja na pintura ou na cena coreográfica é o corpo visível que destaca as forças invisíveis deixadas ali e se resolvem em marcas vivas através da atividade perceptiva que perpassa pelas inúmeras sensações que se têm. “O corpo visível mostra as forças invisíveis pelas marcas que elas deixam nele, e tornando-as visíveis ele as potencializa e eleva a um nível superior, vital” (PELBART, 1989, p. 104).

Quanto à origem de uma nova força, Pelbart ressalta que se trata de um desafio ao convencional e as pespectivas herdadas da realidade. A nova força requer a extração daquilo que é improvável e da vida naquilo que ainda adormece, numa luta constante contra os clichês, imagens experimentadas, probabilidades e da “figuratividade pré-pictural”. É, numa referência à pintura, preciso limpar a tela e subverter as figuras deixando-as livres, deformando-as, deixando-as de ser representativas para conjugar um misto de formas, que traduzem em si a ressonância de uma força.

A tela pintada, assim como o gesto é o corpo visível que destaca as forças invisíveis deixadas ali e se resolvem em marcas vivas através da atividade do ofício e da criação que perpassa pelas sensações e percepções que revigoram e transformam.

Os elementos específicos das linguagens ou os mecanismos do ofício são os “alimentos” de que o semiólogo Roland Barthes fala sobre o pintor Bernad Requichót. Estes são diferentes e digeridos pela mão, que faz esconder ou revelar o que se pode trazer de valioso. A mão, que revela aquilo que dá o sentido vigoroso e original e inevitável, é aquilo que, ao acaso, se põe ao entorno da imagem: a espuma da matéria. Em Requichót, é a matéria que contém o eco de seu signo, o resíduo que “desfigura o alimento porque extrapola sua função”, o “objeto deformado” (BARTHES, 1990, p.197) pela mão que se deixa levar.

Requichót, então se lança ao imaginário como um jogador que se arrisca em tacadas estratégicas, em busca de soluções para suas novas empreitadas culinárias. A sua coragem de arriscar na arte está na vida, está no homem, no seu próprio corpo e na própria matéria.

A obra, portanto não se fixa. Seu fim é sem fim, transforma-se. São as marolas provocadas pela pedra atirada, são as ressonâncias de o pintor abstrato Wassily Kandinsky[1] descreve:

(...) os movimentos nos envolvem – jogo de linhas e de traços verticais e horizontais, inclinados pelo movimento em direções diferentes, jogo de manchas coloridas que se aglomeram e se dispersam, de uma ressonância às vezes aguda, às vezes grave. A obra de arte reflete-se na superfície da consciência. Encontra-se “além” e, quando a excitação cessa, desaparece da superfície sem deixar vestígios (...) aí temos a possibilidade de penetrar na obra, de nos tornarmos vivo nele e vivermos sua pulsação por todos os nossos sentidos (KANDINSKY, 1997, p. ?).

Na busca, o trabalho obriga a afastar o fim, ele é infinito, se expõe como processo e procura representar o prazer por meio de algo. Esta é a pintura de Requichót. Este é o gesto poético da dança contemporânea. O prazer do gesto advindo de um desejo interno, o aquém do toque na tela, o aquém do movimento na dança, o gerador amplificado. É em Helenita Sá Earp[2], quando descreve a magia do gestual na dança, o “espírito criador” em Wassily Kandinsky (2000, p. 181), a força divina do elemento.

A dança, para Helenita Sá Earp, deverá em seu papel de verdadeira arte, contribuir para o conhecimento específico da linguagem bem como na busca pela integração do movimento num ato fundamental para a plenitude e o desenvolvimento da criação. Seus estudos dão conta de uma poética[3] do movimento, no que concerne a um “saber poético como saber criativo” (DANTAS 1996, p.54).

Em sua compreensão profunda, despertar-se-á um gesto totalizador em diferentes aspectos que envolvem o impulso criador pleno. Isto, entretanto, nos leva a perceber que o movimento em dança deve estar desvinculado de um simples ato automatizado; dessa forma, não representaria o verdadeiro movimento artístico integrado. O movimento integrado é um gesto da totalidade do ser, no qual ele comunga, de maneira harmoniosa, o conhecimento e a sensibilidade, frutificando em um domínio da téchne[4] no movimento, enquanto se dança, e na composição de uma cena coreográfica. Acrescenta-se que, no parâmetro do movimento integral, o valor da sensibilidade, da totalidade, infinitude e da vitalidade criativa é o que o eleva à idéia da obra de arte como ato de criação. “O gesto do artista - ou o artista como gesto” (PONTY, 1999, p. 146).

Isso quer dizer que a técnica propriamente dita, é resultado do diálogo sutil entre os fatores que ‘ligam’ a imaginação, a sensibilidade, e a escuta à matéria, que integram o corpo ao espaço e ao objeto, que ligam a “necessidade interior” (KANDINSKY, 1998, prefácio) à forma, e que se processa no instante da criação. A técnica portanto é instantânea e dinâmica, assim como o é o ato criativo. A técnica está na criação, na sutileza da criação, no diálogo da criação, na complexidade sutil da feitura, ou melhor, no fazer, verbo de ação, naquilo que envolve o todo do humano em sua atividade, na produção dinâmica e transformável. Enfim a técnica é a própria dinamicidade da criação, seu momento de diálogo e correspondência do mais ínfimo e íntimo do homem consigo mesmo e com seu meio. A técnica é a produção de si mesmo de um mundo que se filtra pelo íntimo complexo ato criativo.

Quando se percebe, se estimula a capacidade de interagir consigo mesmo, evocando diálogos ente o mundo e o ser; e com o objeto da obra de arte, trazer ele para o seu domínio corporal, fazendo dele parte do seu ser, de processá-lo, codificá-lo, traduzi-lo, interpretá-lo, utilizando fontes da sua sensação, das suas experiências anteriores, ou vivências, sua cultura, do seu sentimento e de fontes da cognição, pois o pensamento se processa por todas estas portas que se abrem para a informação. A inteligência se processa por meio do entendimento que se resolve na união destas várias fontes de absorção. Portanto a arte está a serviço do desenvolvimento integral do homem, que se satisfaz na formação e concretização do símbolo. O resultado formal é a realização ou a presentificação da capacidade de entendimento e desenvolvimento de uma idéia.

O ato de criação é um produto muito mais proveniente de sentimentos e intuições do que operações puramente lógicas. O ato de criação é segundo Luigi Pareyson (2001), o ato de fazer ou exercício de formatividade, isto quer dizer que a criação ou o perfacere se realiza na própria invenção e no modo de invenção. Melhor dizendo, na forma concebida enquanto realização concreta necessária e no processo de construção, na nova maneira de conceber, na invenção de novos processos de feitura ou no exercício de feitura, no como. “Questões que se preocupam menos com o ‘porquê’ das coisas que com seu ‘como’” (FOCAULT, 2003, p. 82).

A feitura em si é de suma importância, pois significa “êxito artístico”. A extensão da arte revela o pensamento que não pode ficar apenas neste âmbito: “já que a obra existe só quando é acabada, nem é pensável projetá-la antes de fazê-la e, só escrevendo ou pintando, ou cantando é que ela é encontrada e é concebida e é inventada” (PAREYSON, 2001, p.26).

Envolve um misto de rebeldia, de negação ao cânone, ao pré-estabelecido, um desconforto com o que já há, um ato subversivo que renega e propõe o novo. Isso envolve dizer que ao procurar o novo, o inusitado, o desconhecido, o artista se envolve, pela criação, num diálogo entre que se revela e o que vela, pois não somente em relação ao que já está criado, mas o ato em si, deriva de uma escolha que põe em jogo a manipulação da matéria que na dança se confunde com o corpo e com o movimento.

A técnica é discutida em Pareyson um entremeio de aplicação árida, de domínio técnico operacional dos meios artísticos e de um domínio sensível, que perpassa pela fluência da imaginação, da intuição e da escolha. Portanto em sua definição de ‘técnica externa’ e ‘técnica interna’, se classifica pela união do sinal físico, ou da concretude formal, com o próprio ato de criação.

O exercício ‘per si’ não terá nenhuma função senão for canalizado para a vontade de expressão, “porque a arte só nasce desta última, de modo que o exercício per si, não tem nenhuma relevância artística, porque, ou coincide com a produção de uma obra, e então é arte, ou não leva à produção de uma obra, e então está fora da arte” (PAREYSON, 2001, p. 168).

A técnica reside na destinação e manipulação das ferramentas artísticas. Algo na arte se aprende, talvez nem para todas as técnicas sejam eficazmente utilizadas para a realização de uma obra, mas o aprendizado não se limita somente aos meios técnicos operacionais de uma dada linguagem artística, recaindo também na educação sensível onde se desenvolvem o senso crítico, noções de valores, seja ele, pela estética, noções de disciplina e desenvolvimento da capacidade de consciência emocional. Há um grande estímulo a componentes responsáveis pela relação do homem consigo mesmo e com seu meio através do estímulo à observação, percepção e sensação.

Portanto a técnica não se refere somente ao domínio dos meios de feitura mas do processo de feitura. E isso envolve tanto de domínio do ofício quanto de um domínio romântico de liberdade e de sensibilidade do ato criativo. “quem separa menos rigorosamente e confia de bom grado na memória imitativa pode se tornar, em certas condições, um grande improvisador; mas a improvisação artística se concentra muito abaixo do pensamento artístico selecionado com seriedade e empenho. Todos os grandes foram grandes trabalhadores incansáveis não apenas no inventar, mas também no rejeitar, eleger, remodelar e ordenar” (NIEZSCHE, 2000, p. 120).

A técnica não está somente na manipulação de uma determinada qualidade de movimento, ou na sua trajetória definida, na ótima orientação espacial de uma transformação de linhas do corpo, está na melhor qualidade de movimento, na melhor trajetória definida, na melhor transformação de linhas que se realiza em um único instante de diálogo. A este ‘melhor’ designa-se a capacidade de integrar a idéia de algo com a sua concepção, à grosso modo. Designa a capacidade de dialogar com as mais íntimas relações da intuição, do conhecimento da gramática, da escolha, do modo de concepção escolhido,da habilidade de construir em vida concreta e da crítica incessante e recorrente que participa de todo este processo

A questão da técnica recai num estado que interconecções entre alguns aspectos que se mostram intrínseco no ato criativo. As relações dialógicas abarcam um trabalho da matéria que passa pela “mão” e pelo mistério da “noite” (NONARINA, 2003, p.19) ou pelo “espírito do artista”, (KANDINSKY 1998, prefácio). Na “mão” é que é possível a transformação de algo que ainda está por vir, de algo que ainda se encontra sob a escuridão da noite e só se revela na ação artística quando passa pelos canais do homem. É na mão, no corpo, nas aberturas do mais íntimo sensível da carne que a matéria crua é preparada. É quando a matéria cai que ela pode ser trabalhada e desperta para a arte. “Por outro lado, as possibilidades e as sugestões que o artista sabe fazer-se dar pela matéria, não é ele quem as cria ou que as confere a ela: ele apenas as despertou nela, de acordo com a sua particular constituição, e é bem ela quem as oferece e propõe a ele” (PAREYSON, 2001, p. 164). Portanto, é jogo de forças.

Valère Novarina[5] descreve o reconhecimento de um espaço de atuação de todo o movimento da matéria-palavra, que por vezes não quer se determinar em sentido mas sim, fazer-se levar por labirintos dos espaços, as nuances do sopro de um corpo que se abre simultaneamente à sua dobra, ao seu avesso.

A batalha é incessante, na trincheira do diálogo, luta entre o corpo que impulsiona o gesto, que brinca em capturá-lo, tensiona o pensamento ao nome que se resvala pelos ralos da ação dinâmica num jogo misto da caça e da fuga. Os pólos múltiplos conseqüentes da libertação se afunilam no confinamento do gesto que o pensamento trata de desestabilizar: o jogo das tensões. Tal luta enfadonha espelha-se na analogia da dança dinâmica das partículas subatômicas da matéria conferida pela física moderna: transformação e interação, pois se tratando de ondas, sua existência não pode ser separada de sua atividade. Portanto as palavras na qual se refere o teatrólogo Novarina, como campos de confinamentos de atividades de movimento constante entre os espaços que são propriamente a matéria em ação, ou matéria como a própria ação: a matéria da fala, a matéria do gesto.

O aspecto dinâmico da matéria emerge da teoria quântica como conseqüência da natureza ondulatória das partículas subatômicas e é ainda mais essencial na teoria da relatividade; aqui, matéria não pode ser separada de sua atividade. As propriedades das partículas subatômicas só podem ser compreendidas num contexto dinâmico, ou seja, em termos de movimento, interação e transformação (CAPRA, 2006, p. 148).

E a luta continua onde não há vencedores nem perdedores, mas uma interação necessária para aquilo que, não se encontra, mas que coincide nos entrecruzamentos do diálogo, que se interpenetra no sopro da respiração. É a dança das palavras, da fala e do pensamento num movimento de ir e vir, de cozimento e de degustação que se digere e se prepara novamente, na cozinha de Barthes.

A fala é o elo que liberta. As palavras buscam o pensamento que as desfaz; o pensamento se liberta pelas palavras que captura: entre as palavras e a fala e o pensamento, há desde sempre um combate, uma luta que não pára. Em toda fala, ouve-se esse acerto e esse desacerto que é nossa libertação pelas palavras. Pensar é um rapto. Há perpetuamente uma cena de caça no espírito (NOVARINA, 2003, p.18).

No jogo dos espaços, o que Novarina descreve é que a fala não nomeia, mas sim, nos aproxima daquilo que nos falta. Se eu me chamo Lara, me aproximo de mim mesma assim como me ativo para meu próprio corpo que se quer chamar. Por estes mesmos caminhos de ação, é dançada a fala, os gestos. Na distância despertada pelo sopro do corpo, abre-se a passagem para o mundo dos conflitos e dos segredos de nós mesmos.

Toda fala verdadeira guarda sempre para nós essa face escondida. É porque ela nos vem da noite. É de noite que todos nós repetimos nomes e começamos a falar; é de noite que pela primeira vez ouvimos. Quando falamos, no fundo das palavras, há a lembrança dessa primeira partilha no escuro. Há na menor palavra que seja um som escondido e uma presença invisível, um fragmento, a troca e a passagem de um a outro de uma parte de noite ( Ibid, p. 19).

A fala, assim como o gesto, trás consigo a condição existencial da matéria que desde as teorias físicas modernas nos revelam, concernem na transformação de algo que em vias de acesso pela fala e pelo gesto desestabilizam as espacialidades nos carregando a novos lugares, se é impossível prever-mos o lugar exato em que uma partícula poderá estar, tanto será a inconstância e a liquidez da fala e do gesto que transita por interiores de nós mesmo e que nos permite fluir pelo interior da palavra. Na fluidez dos líquidos a se faz a sua existência. Na transformação constante dos campos ondulatórios do corpo que fala e movimenta-se. Na ação dinâmica e tensa se pronuncia o sutil sopro que faz mover a fala, que faz nascer o gesto.

Qualquer palavra, seja ela a menor de todas, é alavanca do mundo. Qualquer fala, ou gesto, qualquer sopro de respiração é um desvio da morte e um encontro com o mundo, mesmo o sopro presente no silêncio. É o sopro em potencial de uma espera latente de vida, de oxigênio, mas que em mesmo em meio à ausência da palavra se designa ao mistério. “O mistério é incompreensível porque ele te compreende” (ibid, p. 20). O mesmo acontece ao movimento em potencial designado assim por elemento da fenomenotécnica desenvolvida por Helenita Sá Earp ao pensar o gesto que estar por vir em eminência de transbordamento.

Para Earp, dançar é muito mais do que manipular os movimentos, é um habitar. Todo movimento é dançável, quando nele habita uma potencialização poética. Neste pensamento do movimento, postulava uma dança em constante abertura nascente. Não buscava consolidar um novo método ou técnica de dança moderna. Mas sim, várias possíveis fenomenotécnicas necessárias à expressão da eclosão de cada fenômeno corporal desejado. Eclosão de fluxo do se que dança constante interação entre o imaginar, o conhecer e o executar (LIMA, 2002, p.9).

O movimento na concepção de Helenita Sá Earp, surge desta mesma concepção da atividade criadora de que Novaina pontua. A espreita da liberação é a integração no gesto que se desvela em potencialidades que revelam o espaço. É o encontro das forças que convergem os esforços para a dinâmica presença do espaço corpóreo.

Para Earp, dançar é muito mais do que manipular os movimentos, é um habitar. Todo movimento é dançável, quando nele habita uma potencialização poética. Neste pensamento do movimento, postulava uma dança em constante abertura nascente. Não buscava consolidar um novo método ou técnica de dança moderna. Mas sim, várias possíveis fenomenotécnicas necessárias à expressão da eclosão de cada fenômeno corporal desejado. Eclosão de fluxo do se que dança em constante interação entre o imaginar, o conhecer e o executar (LIMA, 2002, p.9).

Se trata de uma doação de órgãos que não cessa até que em algum instante o despir seja completo, até que os buracos sejam invadidos e invadam; até que se toque pelas aberturas e se chame pelas vibrações das forças. Até que, haja uma interação plena entre os aspectos físico, mental e emocional e que a plenitude do gesto seja carregado de energia geradora de transformação do simples movimento em movimento de dança. Gesto carregado de harmonia, intenção interação, integração e criatividade. A criatividade para Earp é fruto de uma escuta do corpo que se desmantela em outros ao mesmo tempo que se carrega de uma ação criadora, transformadora de todo um universo.

Porque que o sopro da passagem se dilui na passagem do instante e a dança dinâmica transforma o ser para outro e outro, numa eterna ressuscitação do ser que nunca se alcança mas se deleita e se revigora ao percorrer novos corpos que se apresentam.

O resultado não importa tanto, o bailarino não quer expressar, não quer interpretar, ele quer antes de tudo, abrir-se a novas experienciações. Ele quer experimentar o entremeio, no muro, no vácuo. O que importa para o bailarino é a carne que quase morre e renasce em um fluxo constante.

Não diria que a forma e o tema a ser engolido não esteja presente, mas não os somente. O que importa no gesto é o jogo, é brincar de vivo-morto. É brincar com a vida, quando se manipula o sopro, é do potencial que se transborda e faz viver. Viver a carne num corpo pelo avesso. A abertura que o corpo refresca, o corpo no movimento é que move e dá vida à coreografia. É o vivo-morto. É no brincar de reinventar sempre, a cada gesto, numa nova forma de driblar a morte. Enganar a foice e se permitir mostrar-se como quando se chega ao mundo pela abertura do ventre materno. Nu, sem roupas, mostrando seus órgãos, esgarçando buracos. Amassando o íntimo, trazendo o ínfimo de dentro, o bailarino se chama para a cena. É estar constantemente na passagem dos buracos do corpo, num corpo sem órgãos, pois os órgãos estão no fora para serem digeridos. É mostrar a dobra, e na dobra, a cada nova abertura par a outra dobra. É no entremeio, no vácuo do corpo que teima cada repetição, mostrar sua nova maneira de viver e sua própria vida que entra em jogo numa roleta russa a cada apresentação.

O jogo da roleta russa onde a morte é o cheiro que vem e se esvai pelo movimento que desloca ar e transforma o corpo do bailarino em um ser novo que não mais ele, nova vida, novos seres nascem, nascem de buracos, nascem não mais sujeitos, mas coisas, troços, massas, contornos, amassados, neblinas, órgãos, sangue, pontos, linhas, suspiros, sopros, ares, líquidos, bolhas, pedras, secreções, sucções, animais...

O bailarino se destrói de si, se aniquila, se transforma, se mata, se mastiga a cada gesto, “até se tornar invisível” (ibid, 2005, p.29). O corpo do sujeito desaparece. Aparecem imagens o nascimento de imagens que não cessam o desespero do aparecimento, a morte que as leva, para dar lugar a novos nascimentos. Fluxo, líquido, os pontos e linhas de um corpo líquido que se deixa embalar pelo leva-e-traz das ondas.

Em cada um de nossos gestos, toda palpitação do mundo, todas as suas interações estão presentes, refletem-se e se repetem, concentram-se como em um espelho convergente. Neste diálogo de movimento entre nosso ser ínfimo e o todo, é a invisível e incessante vida do todo que respira com nosso alento e pulsa com o nosso sangue. Viver é, antes de mais nada, participar desse fluxo e dessa pulsação orgânica do mundo que está em nós, desse movimento, desse ritmo, dessa totalidade, porque, mesmo durante nosso sono, vela em nosso peito a lei da dupla batida, a da nossa respiração e a do nosso coração (GARAUDY, 1980, p. 26).

O corpo da dança desenvolve no movimento a práxis de um sistema fluido e líquido. É o poder liquefeito da forma. O corpo conserva seu caráter fluído e deslizante por mais que as formas tendem a amarrá-lo: jogo de tensões. “O corpo está em constante movimento, e o movimento faz parte da natureza do corpo. Não existe estaticidade na corporeidade” (EARP, 2000 apud LIMA, p.28)

A técnica, portanto, está onde não há mais cobranças, onde não há fórmulas, ou padrões, mas há caminhos abertos, onde há possibilidades de passagens, onde há possibilidade de escuta, de libertar-se pelos buracos que se formam no ato criativo. Ela confundi-se com a criação, neste sentido, pois o que se joga, é o jogo da matéria a ser desvelada. Tanto um quanto outro fazem parte de um campo de batalhas, onde tendo a base operacional como subsídio importante, trás a tona o trabalho da “mão” que transfigura a matéria, transformando-a através da elevação máxima e dinâmica de uma abertura sensível pela evocação da energia criadora. No mesmo tempo que “não há arte se ofício” (Pareyson, 2001, p.170), “o ato artístico é todo criativo”. “e esta criatividade de arte e ofício, na verdade, não significa que a técnica se dissolva na pura criatividade da arte, mas antes, que a arte se encarna necessariamente numa atividade fabril.

Então as regras de ser cânones ou preceitos, fórmulas ou receitas, mas tornam-se prescrições provocadoras e estimulantes; não aparecem mais como constrangedoras, mas como cadeias voluntárias, indispensáveis para afugentar a facilidae dispersa e precisar a inspiração; não representam mais o extrínseco e convencional domínio da tradição, mas são advertências para tirar da arte precedente sugestões esteios para operações novas e inventivas; ou melhor, associam-se indissoluvelmente ao rito criativo da atividade artística, tornando-se, de quando em quando, modos de fazer, vias Ed execução, procedimentos artísticos, segredos operativos, ímpetos inventivos, promessas de eito, presságios de obras, garantias de sucesso (PAREYSON, 2001,p. 173)

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[1] Kandinsky foi determinante para uma teoria geral da pintura abstrata ou não-figurativa e acabou por influenciar muitas concepções da criação na dança moderna como nos estudos de Earp acerca do movimento em Dança, tratados no desenvolvimento da pesquisa.

[2] Professora Emérita de dança da UFRJ. Introdutora da dança no ensino das universidades brasileiras em 1939. coordenou cursos de Pós Graduação Lato Senso de 1941 até 1980, onde formou inúmeros profissionais que disseminaram a dança moderna por vários estados do país. Diretora artística e coreógrafa da Cia de Dança Helenita Sá Earp, onde representou artisticamente a UFRJ. Foi marcada pela qualidade e vanguardismo de seus espetáculos coreográficos. Na sua trajetória acumula cerca de 720 apresentações entre eventos nacionais e internacionais, com várias premiações em significativos festivais no Brasil onde destacam-se: as turnês realizadas nos Estado Unidos, Portugal e Holanda em 1951 e 1959, apresentou-se no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro em 1959, participação no I Festival de Danças do Brasil na Universidade do Paraná em Coritiba em 1962, no Congresso Mundial de Educação Física e Desportos em Madri em 1965, além de inúmeras apresentações nas capitais do país pelo Plano de Ação do MEC em 1973. Já sob coordenação da professora Ana Célia Sá Earp, pode-se citar as participações nos festivais Latino-americano de Dança Contemporânea, no primeiro Simpósio Internacional do Cuballet, ambos realizados no México em 1991 e 1992, na ECO 92, no Festival de Dança Contemporânea em 1993 em Salvador, premiações no IX e X de Dança de Joinville em 1991 e 1993, como também realiza constantes temporadas até o presente, em teatros do Rio de Janeiro e outros estados do Brasil. In: LIMA, André Meyer Alves. A Poética da Deformação Gestual na Cena Coreográfica. (Dissertação de Mestrado). Niterói: UFF, 2002, p.III.

[3] Segundo Dantas, a palavra poética tem sua origem grega: poietikós, que produz, cria, que forma e, poieio: verbo que significa criar, compor, construir, agir com eficácia.

[4]“Como epicentro de toda práxis, a teoria Fundamentos da Dança se excede para além de conteúdos normativos e causais, deixa de ser vista como um mero instrumento para ser compreendida como um modo de desvelamento, um dilatador do espaço da criação(...)é uma atitude dinâmica de fluxos de acesso à verdade (alethéia) do movmiento” (MOTTA, 2006.p.122).

[5] Valére Novarina é pintor, autor e teatrólogo. “Como seu pensamento só faz sentido ao ser ouvido, já que constituído por ritmos e sonoridades, o teatro passa a ser o lugar de percepção dessepensamento, pois o lugar onde as palavras são ouvidas, vistas e sentidas” (Novarina, Valére. Diante da palavra (tradução de Angela Leite Lopes) – Rio de Janeiro: 7 Letras, 2003.