domingo, 30 de março de 2008

Uma abordagem reflexiva sobre o trabalho corporal de Angel Vianna

CONSCIÊNCIA DO CORPO

Esta comunicação traz um resumo sobre o capítulo “Concepções”, que faz parte de minha dissertação de mestrado, uma abordagem reflexiva sobre o trabalho corporal de Angel Vianna. Trata de um estudo que pretende vincular a teoria com a prática corporal.

Desde da década de 1980 que articulo a filosofia com a prática exercida há anos. A questão principal deste diálogo surgiu através da convivência com Angel Vianna que situa o corpo no centro de sua prática.

Ela sempre procurou apropria-lo embasando-se nos modelos teóricos da saúde (fisioterapia, medicina, psicologia) através das informações anatômicas, fisiológicas e cinesiológicas, porém existe um diferencial em relação à utilização destas informações: o corpo não é acentuado pela preocupação de tratá-lo e tão pouco interpreta-lo. A intenção de lidar com este suporte teórico é sinalizar e abrir o canal do autoconhecimento para o dono do seu próprio corpo.

O capitulo referido acima expõe primeiramente o conhecimento formal, objetivo que trata o corpo como um objeto estático e, desta forma afastada da observação, pesquisa e curiosidade que Angel Vianna travou no campo da dança.

Na trajetória de Angel é possível verificar que em detrimento de sua observação, de seu olhar sensível e artístico a informação e o conhecimento do corpo surgiu pela via da relação. Portanto não sendo suficiente para responder a motivação específica de uma necessidade de compreensão que estabelecesse uma relação imediata com a prática e a vivência corporal foi preciso liga-lo a um outro modo de pensar.

O “corpo-próprio/vivido” de Maurice Merleau-Ponty acrescentará no entendimento desta prática corporal, já que o modelo clássico como já foi mencionado impede a relação entre o conhecimento e a prática. A fenomenologia ao apresentar o corpo sensível contribui para o diálogo com outras noções que vieram pelo víeis da psicomotricidade, da psicologia do desenvolvimento/percepção e da neurologia, tais como: a imagem corporal, a propriocepção e a consciência.

Estas noções ressaltam, na abordagem do trabalho corporal de Angel Vianna, a importância de estabelecer um corpo além do virtuoso e mecânico. Neste sentido pretendo pontua-los sem explica-los, ou seja, não especificar suas funções ou deficiências próprias do pensamento pragmático/representativo que dificulta estabelecer relações (sujeito/objeto), mas abrir para conexões e intercomunicações do corpo com a experimentação. Pela experiência é possível despertar a imagem corporal – “a figuração de nosso corpo formada em nossa mente” (Schilder, P. 1994:11), a propriocepção – “aquele fluxo sensorial contínuo, mas inconsciente, das partes móveis de nosso corpo (músculos, tendões, articulações)” (Sacks, O. 1988:51) e a consciência especificamente a consciência do corpo mais adiante acentuada.

Estabelecido à condição de apreender o corpo representado em um corpo próprio surgem outras questões não respondida pelo pensamento fenomenológico. Trata-se da instabilidade física: com os afetos, prazeres, necessidades – enfim com a desorganização.

O estudo visa expor a noção de um corpo desvinculado do sistema orgânico que impõe sistemas, regras, tabus, padrões e que aproxima da experimentação efetiva de agenciar o desejo manifestado pelo impulso, instinto, intuição e insight. Assim sendo propõe pensar um corpo não categórico tanto no nível dos sentimentos quanto das funções orgânicas. O corpo instalado aqui é desorganizado da função que é demarcada pelo corpo fisiológico, delimitado, decapitado, classificado, apoiado em uma suposta organização dita e avaliada por outros.

O propósito desta abordagem em questão é frisar o corpo como estado de mudança contínua sempre acontecendo e desperto pelo sentido completo que é a propriocepção/pele. Perspectiva vislumbrada em José Gil – o complemento que faltava para desvendar a palavra chave na abordagem corporal de Angel Vianna: a consciência, ou melhor, a “consciência do corpo”.

A leitura sobre a “consciência do corpo” de Gil fortalece as indagações provocadas pelo conceito de “corpo sem órgãos” de Gilles Deleuze. Dentro desta perspectiva o estudo utiliza as referencias deleuzianas de “corpo sem órgãos” apresentado por Antonin Artaud no texto Para acabar com o julgamento de Deus.

O corpo em Gil afasta a noção de corpo sensível ou funcional próprias das ciências biológicas e da fenomenologia. Para ele corpo é “feixe de forças e transformador de espaço e de tempo (...) comportando um interior ao mesmo tempo orgânico e pronto a dissolver-se ao subir a superfície”. (Gil, J.2001:68).

Em seu livro Movimento Total ele aborda o inconsciente/consciente através da análise da dança pós-moderna. Na dança o inconsciente prevalece, ganha força, faz brotar o movimento criativo, a espontaneidade, a vida, a fluência do movimento. Porém o movimento dançado não é inconsciente e nem reflexo (pode tornar-se reflexa) e sim consciência.

É através deste paradoxo que a abordagem do trabalho corporal de Angel realmente se efetiva, ou seja, na relação inconsciente/consciente de um conhecimento espontâneo que o corpo tem do mundo. O corpo por si sabe como um saber próprio do corpo através da consciência como portadora de energia, disponibilidade e atenção interior – “a consciência de si deve deixar de ver o corpo do exterior, e tornar-se uma consciência do corpo”. (Gil, J.2001:159).

Gil deixa claro duas configurações opostas da “consciência do corpo”: a que controla – consciência de si, egóica que torna o corpo impermeável para os movimentos internos e para os sentidos – corpo organizado mantido num modelo rígido de movimentos e, a que libera e torna o corpo poroso, isto é, “condição para desposar os movimentos e as tensões internas do corpo” (Gil:2001:160).

Então como deixar a consciência invadir o corpo? Pela experiência ao entrar nas “pequenas percepções”, ou seja, nas possibilidades de absorção das sutilezas, detalhe, nuance provindo do interior do movimento. A consciência porosa é penetrada pelas “pequenas percepções” de liberações de tensões, não se tratando de uma concentração em um ponto enquanto objeto observado e tratado logicamente e concretamente (consciência de si), mas a consciência do corpo que passa por contatos do movimento em um estado de sentido contínuo.

Esta consciência relaciona-se com um corpo paradoxal, com sua porosidade – o interior que emerge para a superfície/exterior, o duplo de möebius – o dentro e o fora que se conjugam na passagem de movimento trazendo mais consciência em um interlaçado de energia. Para Gil é pela energia e pelo espaço-tempo que se concebe a “consciência do corpo”. Trata de dois elementos fundamentais para a aquisição de um corpo apto para a criação espontânea e possível de vivenciar na prática concebida pela professora Angel.

O capítulo “Concepções” procura levantar um pensamento sobre a abordagem do trabalho corporal de Angel. O estudo fomenta, através das teorias esboçadas, que a definição de sua prática (conscientização do movimento) reflete experiências que estimulam o pensamento. Assim nos afirma Angel “eu ensino a seres pensantes” (Pólo, J. 2005:42), ou seja, para aqueles atentos à comunicação do mundo e ao constante diálogo consigo mesmo.

BIBLIOGRAFIA:

ARTAUD, Antonin. Para acabar com o julgamento de Deus. In: WILLER Claúdio (seleção

e notas) Escritos de Antonin Artaud. Porto Alegre: L&PM, 1983.

DELEUZE, Gilles. Conversações, 1972 – 1990. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992.

DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. O que é filosofia? Rio de Janeiro: Editora 34,

2oed, 1992. (Coleção TRANS)

_________________________________ Mil Platôs – Capitalismo e Esquizofrenia. Vol.3,

Rio de Janeiro: Ed. 34, 1996.

GIL, José. Movimento Total – O Corpo e a Dança. Lisboa: Relógio D’Água, 2001.

MERLEAU-PONTY, Maurice. A Fenomenologia da Percepção. São Paulo: Martins

Fontes, 1994.

POLO, Juliana. Angel Vianna: Uma trajetória do Corpo. Pesquisa Rio Arte – 2005.

SACKS, Oliver. O homem que confundiu sua mulher com um chapéu. Rio de Janeiro:

Imago, 1988.

SCHILDER, Paul. A Imagem do Corpo – As energias construtivas da psique. São Paulo:

Martins Fontes, 1980.

TEIXEIRA, P. Letícia. Conscientização do Movimento: Uma prática corporal. São Paulo:

Caioá, 1998.

____________________________

Letícia Pereira Teixeira iniciou sua trajetória corporal em 1975 com a Expressão Corporal nos cursos livres ministrados por Angel Vianna. Pouco tempo depois ingressa no primeiro curso de formação oferecido pelo casal Angel e Klauss Vianna (1979 à 1983). Curso, esse, oficializado à partir de 1984 como Curso Técnico de Bailarino, atual Curso de Formação em Dança em seu próprio estabelecimento (Centro de Estudo do Movimento e Artes – Espaço Novo, atual Escola e Faculdade Angel Vianna.

Graduada e Licenciada em Filosofia (1985) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (IFCS)

Pós-graduação em Educação Psicomotora (1995) - IMBR.

Título de psicomotricista pela Sociedade Brasileira de Psicomotricidade em 1999.

Mestrando (2006/7) em Teatro. - UNIRIO com o tema de estudo: Abordagem do trabalho corporal de Angel Vianna.

Autora do primeiro livro sobre a abordagem corporal de Angel Vianna: Conscientização do Movimento: uma prática corporal, Editora Caióa, São Paulo, lançado em 1998

Atualmente é professora da cadeira de Expressão Corporal e Improvisação I e II da Faculdade Angel Vianna.




domingo, 16 de março de 2008

A PREPARAÇÃO TÉCNICA E ARTÍSTICA DO ATOR-BAILARINO

UMA REFLEXÃO

Por Marta Peres – professora do Departamento de Arte Corporal da Escola de Educação Física e Desportos da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

‘Paulo Autran afirmava que o que mais o atraía no teatro era justamente seu caráter efêmero...

A discussão acerca dos limites entre a destreza técnica e a pura expressividade não é recente entre artistas que se perguntam onde termina um e onde começa outro domínio. Por um lado, pode-se considerar a própria definição destes conceitos uma iniciativa meramente didática, até mesmo arbitrária, de algo jamais passível de separação de fato. Apesar de concordar, em parte, e reconhecendo a dificuldade desta empreitada, o tema suscita especial interesse teórico que faz valer a pena esmiuçar estes conceitos e buscar dados concretos na prática artística que possuem afinidade ora com um ora com outro extremo de um suposto prisma que se estende do domínio da técnica à expressão genuína.

Uma possível abordagem toma de empréstimo a dialética entre os elementos apolíneos e dionisíacos das artes, estabelecida por Nietzsche em sua ‘Origem da Tragédia no Espírito da Música’. O filósofo inspirou-se em Apolo e Dioniso, divindades cultuadas na Grécia Antiga. O primeiro - deus da harmonia das formas visíveis, tais como as vislumbradas no ‘sonho’ - está associado à plasticidade das artes: pintura, escultura, arquitetura, artes do espaço que persistem ante a passagem do tempo. Nas artes cênicas, estes aspectos se fazem presentes no cenário, figurino, composições espaciais. Os desenhos realizados pelas trajetórias de movimento do ator-bailarino no espaço, embora visíveis, não são passíveis de congelamento. Na dança, deparamo-nos com a própria materialidade do corpo do artista, e o movimento conseqüente à passagem de sinal eletroquímico através dos neurônios para as fibras, agrupadas em músculos, grupos, fáscias, responsáveis por tracionar, nos respectivos pontos de inserção, os ossos, barras rígidas das articulações, gerando movimento circular em torno daquele eixo no espaço...

O espaço é a dimensão de Apolo.

Independentemente do quê se expressa, todos os movimentos se dão a partir desta base – a destreza passa pela afiação das cordas do instrumento que é o corpo, em sua constituição anatômica, pelo crescente domínio da atividade neurológica, visando à realização do ato em conformidade com a intenção do artista. Técnica. Ou mesmo uma tecnologia?

Porém....

O que este sofisticado conjunto de células e tecidos é capaz de realizar jamais poderá se restringir a um estudo puramente fisiológico, cito-histológico, cinesiológico, biomecânico ... Se a cinemática e a dinâmica descrevem o movimento sob uma perspectiva quantitativa, números de ângulos e vetores de forças não expressam o conteúdo que preenche a passagem por cada ponto das respectivas trajetórias, de maneira que adentramos o campo das ‘qualidades do movimento’, vastamente estudado por Rudolf Laban. E é a este quê de (quase) impossível descrição racional, verbal, ou lógica, mas inevitavelmente causado pela ação daquele mesmo aparato material do corpo - que se refere Nietzsche ao eleger a ‘música’ como o componente dionisíaco das artes. Dioniso não morava no Olimpo. Oriundo de remotas tradições agrárias, representa justamente a efemeridade suscitada na fala de Paulo Autran: sua dimensão é o tempo.

Capaz de levar ao êxtase por meio do orifício do ouvido, pela vibração impressa sobre a superfície da pele, embora audível, no campo visual, a música é puro silêncio: não podemos vê-la! Possui um caráter intraduzível por códigos – o pentagrama é uma indicação apenas que, se meramente seguida à risca, elimina a interpretação, sem contar toda a infinidade de criações não escritas ou mesmo pela total impossibilidade de registro, filho-irmão, de um determinado tipo de produção à que se propõe registrar... não enxergável, não traduzível, escapole às investidas de capturas, é diferente do sonho de que se recordam as imagens: segundo Nietzsche, o dionisíaco afina-se com a imprecisão e o esquecimento da ‘embriaguez’.

Um não existe sem o outro.

As estruturas do corpo humano são materiais, mas suas infinitas possibilidades de penetrar no espaço, não! Atores japoneses costumam dizer que o espetáculo corresponde à concentração das infindáveis horas de ensaios num único instante, tal como se fosse possível comprimir um arranha-céu numa caixa de fósforo, eliminando-se os espaços vazios que separam as partículas de matéria.

Techné, em grego, quer dizer, nada mais nada menos, que ‘arte’...

Seria a técnica-propriamente-dita somente um primeiro passo, o qual, ao dominá-lo por completo, a Técnica, no sentido mais amplo, se permite dele esquecer e se desvencilhar, como quem não consulta gramáticas para alcançar, enfim, a expressão poética? Não seria a expressão justamente a sofisticação extrema de uma técnica capaz de abandonar seus componentes materiais ao fluxo?

O lápis e o risco. Matéria e energia. Em última instância, apenas apresentações peculiares da mesma coisa, sob diferentes condições: à velocidade da luz, matéria é energia, transmutação esta que a arte se propõe a realizar sem os custosos equipamentos da tecnociência, mas por meio de uma sofisticada preparação... técnica!