domingo, 16 de março de 2008

A PREPARAÇÃO TÉCNICA E ARTÍSTICA DO ATOR-BAILARINO

UMA REFLEXÃO

Por Marta Peres – professora do Departamento de Arte Corporal da Escola de Educação Física e Desportos da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

‘Paulo Autran afirmava que o que mais o atraía no teatro era justamente seu caráter efêmero...

A discussão acerca dos limites entre a destreza técnica e a pura expressividade não é recente entre artistas que se perguntam onde termina um e onde começa outro domínio. Por um lado, pode-se considerar a própria definição destes conceitos uma iniciativa meramente didática, até mesmo arbitrária, de algo jamais passível de separação de fato. Apesar de concordar, em parte, e reconhecendo a dificuldade desta empreitada, o tema suscita especial interesse teórico que faz valer a pena esmiuçar estes conceitos e buscar dados concretos na prática artística que possuem afinidade ora com um ora com outro extremo de um suposto prisma que se estende do domínio da técnica à expressão genuína.

Uma possível abordagem toma de empréstimo a dialética entre os elementos apolíneos e dionisíacos das artes, estabelecida por Nietzsche em sua ‘Origem da Tragédia no Espírito da Música’. O filósofo inspirou-se em Apolo e Dioniso, divindades cultuadas na Grécia Antiga. O primeiro - deus da harmonia das formas visíveis, tais como as vislumbradas no ‘sonho’ - está associado à plasticidade das artes: pintura, escultura, arquitetura, artes do espaço que persistem ante a passagem do tempo. Nas artes cênicas, estes aspectos se fazem presentes no cenário, figurino, composições espaciais. Os desenhos realizados pelas trajetórias de movimento do ator-bailarino no espaço, embora visíveis, não são passíveis de congelamento. Na dança, deparamo-nos com a própria materialidade do corpo do artista, e o movimento conseqüente à passagem de sinal eletroquímico através dos neurônios para as fibras, agrupadas em músculos, grupos, fáscias, responsáveis por tracionar, nos respectivos pontos de inserção, os ossos, barras rígidas das articulações, gerando movimento circular em torno daquele eixo no espaço...

O espaço é a dimensão de Apolo.

Independentemente do quê se expressa, todos os movimentos se dão a partir desta base – a destreza passa pela afiação das cordas do instrumento que é o corpo, em sua constituição anatômica, pelo crescente domínio da atividade neurológica, visando à realização do ato em conformidade com a intenção do artista. Técnica. Ou mesmo uma tecnologia?

Porém....

O que este sofisticado conjunto de células e tecidos é capaz de realizar jamais poderá se restringir a um estudo puramente fisiológico, cito-histológico, cinesiológico, biomecânico ... Se a cinemática e a dinâmica descrevem o movimento sob uma perspectiva quantitativa, números de ângulos e vetores de forças não expressam o conteúdo que preenche a passagem por cada ponto das respectivas trajetórias, de maneira que adentramos o campo das ‘qualidades do movimento’, vastamente estudado por Rudolf Laban. E é a este quê de (quase) impossível descrição racional, verbal, ou lógica, mas inevitavelmente causado pela ação daquele mesmo aparato material do corpo - que se refere Nietzsche ao eleger a ‘música’ como o componente dionisíaco das artes. Dioniso não morava no Olimpo. Oriundo de remotas tradições agrárias, representa justamente a efemeridade suscitada na fala de Paulo Autran: sua dimensão é o tempo.

Capaz de levar ao êxtase por meio do orifício do ouvido, pela vibração impressa sobre a superfície da pele, embora audível, no campo visual, a música é puro silêncio: não podemos vê-la! Possui um caráter intraduzível por códigos – o pentagrama é uma indicação apenas que, se meramente seguida à risca, elimina a interpretação, sem contar toda a infinidade de criações não escritas ou mesmo pela total impossibilidade de registro, filho-irmão, de um determinado tipo de produção à que se propõe registrar... não enxergável, não traduzível, escapole às investidas de capturas, é diferente do sonho de que se recordam as imagens: segundo Nietzsche, o dionisíaco afina-se com a imprecisão e o esquecimento da ‘embriaguez’.

Um não existe sem o outro.

As estruturas do corpo humano são materiais, mas suas infinitas possibilidades de penetrar no espaço, não! Atores japoneses costumam dizer que o espetáculo corresponde à concentração das infindáveis horas de ensaios num único instante, tal como se fosse possível comprimir um arranha-céu numa caixa de fósforo, eliminando-se os espaços vazios que separam as partículas de matéria.

Techné, em grego, quer dizer, nada mais nada menos, que ‘arte’...

Seria a técnica-propriamente-dita somente um primeiro passo, o qual, ao dominá-lo por completo, a Técnica, no sentido mais amplo, se permite dele esquecer e se desvencilhar, como quem não consulta gramáticas para alcançar, enfim, a expressão poética? Não seria a expressão justamente a sofisticação extrema de uma técnica capaz de abandonar seus componentes materiais ao fluxo?

O lápis e o risco. Matéria e energia. Em última instância, apenas apresentações peculiares da mesma coisa, sob diferentes condições: à velocidade da luz, matéria é energia, transmutação esta que a arte se propõe a realizar sem os custosos equipamentos da tecnociência, mas por meio de uma sofisticada preparação... técnica!

Um comentário:

Anônimo disse...

Marta, adorei o artigo! Concordo inteiramente com o seu argumento. Bjs, André Martins