quinta-feira, 31 de julho de 2008

VISÃO E PERCEPÇÃO DO ESPECTADOR EM DANÇA

RESUMO
O que temos feito com nossa dança nos dias atuais? Criticamos os críticos com fervor, mas temos analisado a dança a partir da ótica do espectador leigo?
Este trabalho apresenta tópicos sobre este tema e tem como objetivo despertar em nós, profissionais da dança, o desejo de levar ao público algo que o faça dançar junto conosco.

Palavras-chave: Dança. Crítica. Percepção.

1. INTRODUÇÃO

Ao criticarmos qualquer coisa, seja esta arte ou não, precisamos conhecer e entender mesmo que pouco sobre o assunto. A arte não é para ser entendida, mas sentida. Mas, através da ótica do espectador leigo (aqui, em dança), ele tem o desejo de ser afetado pelo que está assistindo e quando não é na maioria das vezes julga ruim o que viu. Concordo que existem coisas ruins por aí, mas para quem pensa dança é mais fácil entender e filtrar quando este ruim é falta de pesquisa, dedicação e ensaios. Mas e o público leigo, como o fazer?
Imagino que para a realização e um trabalho artístico, seja em qualquer área, é necessário haver muita pesquisa e dentro dessa pesquisa procurar o que afetará o público, o que prenderá a atenção dele. Percebo que o que ocorre nos dias de hoje são [alguns] trabalhos realizados a partir de algo que afeta o próprio intérprete, sem uma grande preocupação com o que causará ao público. Se o trabalho é realizado desta maneira, não pode-se esperar grandes elogios da crítica.
Ouço falar muito sobre “virtuosismo” atualmente, mas para o público leigo entender o que é pesquisa corporal, dança em si, não há possibilidade de afetá-los e atrair sua atenção de forma diferente. Só serão atraídos pelo que é belo, de acordo com a percepção de belo impregnado em nossa sociedade, ou seja, virtuoso.
“Criar é, basicamente formar. É poder dar uma forma a algo novo. Em qualquer que seja o campo de atividade, trata-se, nesse “novo”, de novas coerências que se estabelecem para a mente humana, fenômenos relacionados de modo novo e compreendidos em termos novos. O ato criador abrange, portanto, a capacidade de compreender; e esta, por sua vez, a de relacionar, ordenar, configurar, significar.” (Ostrower, 2008, p. 9)

2. ANALISANDO O ÂNGULO DE VISÃO DO ESPECTADOR
O espectador espera algo novo e que ele possa compreender. Talvez não compreender a idéia mais intrínseca, mas compreender que o que ele assiste o leva para algum lugar, mesmo que ele não entenda ou não saiba que lugar é este. Sua mente deve ser capturada para dentro do que está vendo ou assistindo. Se ele vê um quadro, a pintura deve levá-lo para algum lugar. Se um espetáculo de dança, os movimentos devem levá-lo ao palco (mesmo sentado) ou remetê-lo a algo. Deve haver uma relação, uma interação entre público e intérprete.
“O “pássaro” da imaginação dinâmica, tal como um pássaro de fogo sem asas, nas suas chamas lancinantes nos convida a queimar as gaiolas da retenção das formas costumeiras. Isto não quer dizer, que façamos um simples jogo desinteressado com as formas. É o contrário. A plenitude das formas reside no fato de ir à energia sublime que as alimenta, enquanto uma espécie de vibração no íntimo do ser.” (Lima, André Meyer Alves, 2004, p. 35).
Ou seja, precisa haver um motivo, uma pesquisa (que significa trabalho!), um por quê.
Arthur Xexéo, em um de seus textos publicados no Jornal O Globo, fala sobre essa questão:
“Não tive boas experiências com dança contemporânea. Sei que essa frase pode dar a impressão de que fui um fracasso nas minhas tentativas de ser bailarino. Não é verdade. Nunca tentei. Estou me referindo às minhas experiências como espectador. Sou daqueles que são capazes de dar um grand-jeté se, em troca, for desconvidado para assistir a mais uma experiência coreográfica no Espaço Sesc. Desisti de tentar entender qual é a graça de entrar numa sala apertada, com mais 20 pessoas, sentar numa cadeira desconfortável para ver um grupo — bem, grupo é modo de dizer; geralmente, são três ou quatro bailarinos... bem, bailarino é modo de dizer... enfim, recapitulando: três ou quatro dançarinos pelados (se é dança contemporânea, para que gastar com figurino?, devem se perguntar os coreógrafos modernos), estáticos, sentados no chão e que, a cada 15 minutos, fazem, bem lentamente, um movimento circular com o dedão do pé direito. Tudo isso sem música. Afinal, é uma experiência coreográfica. E com muito gritos. Como_se_grita_na_dança_contemporânea.Tô fora. Abro uma exceção, a cada dois anos, para a companhia de Deborah Colker. É outra história. Ali, um grupo de 15 bailarinos enche o palco. Deborah faz um espetáculo. Sua trupe escala paredes, gira em rodas-gigantes, atravessa espelhos. Sua música — sim, existe música nos espetáculos de dança de Deborah Colker! — é marcante. Seus figurinos são surpreendentes. Os elementos coreográficos que dividem o palco com ela são impactantes._E_o_grupo..._dança!!!Digo isso porque senti uma certa implicância por parte dos amantes da dança moderna carioca com “Cruel”, a coreografia com que Deborah ocupou na semana passada o Teatro Municipal. “Cruel” não é mesmo o melhor espetáculo de Deborah — o que é muito natural numa companhia que já possui um repertório com dez espetáculos diferentes —, mas está muitos anos-luz à frente de qualquer outro apresentado recentemente pelas companhias modernas cariocas. Companhia é modo de dizer — a maioria das companhias cariocas_só_se_forma_quando_tem_algo_para_estrear.Deborah Colker esteve em cartaz na semana passada e, mais uma vez, leu os comentários-clichê. Criticou-se a música — aí até entendo: quem elogia espetáculos sem música não pode gostar mesmo —; a frontalidade da coreografia — meu Deus, qual é o problema de bailarinos dançarem de frente para o público? —; a repetição dos movimentos... sou muito mais movimentos repetidos do que ausência_de­­­_movimentos.O verdadeiro problema de Deborah Colker é que seus espetáculos não cabem no mezanino do Espaço Sesc. Ela lota o Municipal, faz temporada de dois meses no João Caetano, dá a volta ao mundo deslumbrando platéias e demonstra, a cada apresentação, como é supérfluo o que a gente escreve sobre ela. Comentários negativos não lhe tiram um só espectador; os positivos não lhe dariam um espectador a mais. O público descobriu Deborah Colker sozinho. E não quer abandoná-la.”
(“A Dança Contemporânea”, Texto de Artur Xexéo, originalmente publicada na Revista O Globo, no dia 4 de maio de 2008).
Como evitar críticas como esta? Ou não evitar? Depende. Para os intérpretes que não se importam com o que o público sentirá com a sua dança/arte, não pode e nem deve evitar porque acontecerá naturalmente. Se o artista deseja levar ao palco algo que é somente dele, sem preocupar-se com o olhar alheio, deve estar preparado para tal. O público não sabe o que se passa dentro do intérprete; não sabe se o trabalho é resultado de uma história, de uma emoção ou uma vivência, ele apenas deseja ser afetado de alguma forma (volto a lembrar que falo do público leigo, meramente espectador e não pensador em dança).
Xéxeo em seu texto massifica toda a classe de bailarinos contemporâneos como não-bailarinos, mas dançarinos e todas as Cias como grupos que só se reúnem quando estão prestes a apresentar um espetáculo. Sabemos que isso não é verdade. Existem, mas não estão todos em um mesmo conjunto. Mas o que quero enfatizar na crítica do Xexéo não é este ponto de vista, mas a visão dele enquanto público. Será que o público em sua maioria tem pensado desta forma? Fica aqui a pergunta.
A dança em nosso país já não está nos primeiros lugares do “rancking” das artes e estamos mais do que cansados de saber disto. Sabemos, mas não saímos dela; e se a amamos tanto, por que olhamos para críticas como esta do Xexéo e rebatemos com mais e mais críticas? Nos chateamos e nos angustiamos por falarem de nossa arte. Mas tenho uma pergunta a fazer: estamos trabalhando para reverter este quadro ou reclamamos e criticamos a crítica sem agirmos?
Precisamos nos preocupar sim com o que o público pensa e sente de nossa arte. Do contrário, como alcançaremos os lugares que desejamos?
Li um artigo sobre a globalização e banalização da dança, que se encaixa perfeitamente ao assunto aqui abordado:
“Não sejamos demagogos! No Brasil, nossa referência, para quem vive da dança, ela é produto, comércio. Aqui se encaixaria aquela célebre frase "arte e sonhos alimentam o espírito, mas não enchem barriga." Portanto, como sobreviver profissionalmente neste contexto? Vendemos (ou pelo menos tentamos) aulas e espetáculos. Isso é fato. E às vezes parece que temos que nos sentir culpados por isso. (...) E é por isso que somos convidados, sim, centenas de vezes para nos apresentarmos em festas, eventos, convenções, etc., sem remuneração! Ah! E não podemos nos esquecer de nos sentirmos lisonjeados, pois alguém lembrou de nós e nos proporcionou a entrada para o mundo "mágico" da divulgação do nosso trabalho! Será que permanecemos na retrógrada política do Pão e Circo?Não devemos ter vergonha de colocar valor em nosso trabalho. E consideremos a palavra valor aqui não apenas como mérito, mas também como significação monetária. (...) Receber pelo serviço prestado é direito e não favor. Isso sim deve ser divulgado! A preocupação central de um artista, portanto, deve se concentrar no aspecto do produto a ser comercializado e na sua qualidade. Na era em que o resgate individual e a busca de identidade cultural se dissolvem e se escoam "interneticamente", tecendo uma rede que torna público o privado, onde estará a dança-arte?
(fragmentos do artigo “A dança e a globa(na)lização”, de Ana Carolina Mundim, publicado no site conexaodanca.art.br).

Preocupo-me com a falta de preocupação dos que não se importam com o produto final de seus trabalhos. Existem multidões de profissionais sérios, mas estes estão sendo taxados como não-sérios pela massificação feita pelo público (volto a lembrar, do público leigo). Temos em nossas mãos (ou, neste contexto, em nossos corpos) uma arte poderosíssima e influenciadora. A questão é para onde a estamos levando? O que estamos fazendo com essa liberdade?
A liberdade é algo maravilhoso, mas tem se tornado perigosa na dança. Hoje pode-se tudo, afinal na dança contemporânea não há limites. Será?
“A natureza criativa do homem se elabora no contexto cultural. Todo indivíduo se desenvolve em uma realidade social, em cujas necessidades e valorações culturais se moldam os próprios valores de vida. No indivíduo, confrontam-se, por assim dizer, dois pólos de uma mesma relação: a sua criatividade que representa as potencialidades de um ser único, e sua criação que será a realização dessas potencialidades (...)”.(Ostrower, 2008, p. 5).

As potencialidades do indivíduo não podem ser confundidas com liberdade desenfreada - se posso simplesmente faço -. Devo analisar:
1. Faço por quê?
2. O que me motiva?
3. Onde quero chegar com meu fazer?
4. Tenho objetivos?
5. Conheço o que faço?

“Uma cultura de movimentação começa a se esboçar, rompendo e promovendo rupturas profundas nas suas concepções das técnicas corporais, inclusive nas linhagens da dança. Estas técnicas, de processos, de estilos e de gêneros de dança na estética coreográfica contemporânea criaram um espaço para o corpo e para a movimentação e que valorizam a hibridização.
Por outro lado, criticando esta hibridização, que se vista de uma maneira superficial, como mero pluralismo justaposto, uma questão de soma, não necessariamente garante a compreensão dos princípios nascentes das genealogias corporais que são misturadas. Neste sentido, somos levados a concordar que “os cruzamentos de estados de corpo não produziram, de fato, uma polissemia, mas sim uma estranha maneira de se deslizar entre corporeidades incompatíveis.” (Lima, André Meyer Alves; Louppe, apud, Ciríaco, 2000, p. 29).

Precisamos banhar de sentido o que fazemos artisticamente. O espectador não é obrigado a entender o que fazemos se não o direcionamos a um sentido. A diversidade de linguagens pela qual estamos vivendo na dança, ao invés de trazer a sensação de liberdade ao espectador, tem confundido, na maioria das vezes, o entendimento quanto às propostas colocadas; sem contar os casos onde não há proposta.
“Ao constatarmos a presença das diversas qualificações que se fundem no ato criativo, cabe diferenciá-las. O homem será um ser consciente e sensível em qualquer contexto cultural. Quer dizer, a consciência e a sensibilidade das pessoas fazem parte de sua herança biológica, são qualidades comportamentais inatas, ao passo que a cultura representa o desenvolvimento social do homem; Configura as formas de convívio entre as pessoas.” (Ostrower, 2008, p. 11).

3. CONCLUSÃO
Considerando então as questões aqui abordadas, sejamos mais criteriosos ao preparar nossos trabalhos quando construídos na intenção de levá-los ao público. Preocupemo-nos conosco sim, com o que estamos dançando, mas lembremos que aqueles que vierem a assistir devem, de alguma forma, participar de nossa dança junto conosco.
Dancemos com motivo, prazer e entendimento, todavia sem deixar o público de fora.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

LIMA, André Meyer Alves. A Poética da Deformação na Dança Contemporânea. Rio de Janeiro, Editora Monteiro Diniz, 2004.
NOVARINA, Valère. Diante da Palavra. Rio de Janeiro, Editora 7 Letras, 2003.
OSTROWER, Fayga. A Sensibilidade do Intelecto. Rio de Janeiro, Editora Campus, 1998.
OSTROWER, Fayga. Criatividade e Processos de Criação. Petrópolis, Editora Vozes, 2008.
___________. Conhecendo e Reconhecendo a Dança na UFRJ. Anais do III Seminário Interno do Departamento de Arte Corporal da Escola de Educação Física e Desportos. Rio de Janeiro, DAC/UFRJ, 2007.
MUNDIM, Ana Carolina. A Dança na Globa(na)lização. Disponível na internet via http://www.conexaodanca.art.br/ .
XÉXEO, Arthur. “A Dança Contemporânea”. Revista O Globo de 4 de maio de 2008.

quarta-feira, 11 de junho de 2008

A Sutileza do Diálogo

Apresento a todos um excelente texto tratando sobre a importância de um olhar sensível sobre o ensino e o aprendizado da técnica de dança da professora
Lara Seidler de OliveiraGraduação em dança pela UFRJ, Mestre em Ciência da Arte pela UFF e Professora Substituta do Departamento de Arte Corporal da UFRJ.
Atualmente membro do corpo Docente do curso de bacharelado em Dança - UFRJ
O texto precisou ser editado para poder ser publicado no blog, mas os interessados em saber mais sobre a pesquisa podem solicitar nos comentários, que nós enviamos o texto na integra

A Sutileza do Diálogo

O estudo se baseia numa discussão sobre as instâncias fabris e seus processos de abertura do corpo do artista-bailarino, demandando relações de diálogos entre as intensidades da força que exalam o avesso de corpos que se mutam em outros a cada momento da criação, seja na dança na pintura ou no teatro. É o diálogo da vida que se resume em um jogo de vivo-morto, na sutileza do gesto na dança.

Objetivos específicos:

1- Discutir o conceito de técnica de dança, a partir das análises de feitura e do fazer criativo, passando por um diálogo com os processos criativos da pintura, do teatro e da dança,

2- Repensar a técnica como um diálogo entre o domínio dos meios operacionais e a abertura do ser enquanto corpo de intensidade e sensibilidade,

3- Penetrar na sutileza íntima do corpo que se desintegra a cada instante técnico-criativo e se desvela em outro no processo da experienciação.

Problema da Pesquisa:

O estudo esbarra nos trâmites dos caminhos que tendem encobrir o corpo daquele que teima em se descobrir a cada gesto. Caminhos estes que se resolvem por dar margens de obstáculo a liberdade da escuta e da experiência dos espaços. Carcaças de cânones e modelos de execução, nem tão menos a deficiência da sutileza e da intensidade da ação em prol da intenção manca que cala cada vez mais em vez de se fazer ouvir, ou mesmo da tagarelice que ensurdece o próprio corpo daquele que quer deixar falar o corpo.

Como o diálogo da técnica aproxima o artista de si mesmo e de seu movimento, se os caminhos dos labirintos não são experimentados? Como o diálogo da técnica e da criação podem ser vistos como dois caminhos que se afastam se esses são entrecruzamento do corpo e do ser? Como são abertos os “buracos” daquele que se distende até revelar o íntimo, mais ínfimo órgão, que falece e renasce no instante?

Desenvolvimento:

A arte é um debate entre a imagem e o “nome”, entre o além da língua, entre o desejo, entre o sentimento e a retórica. Uma conjunção temporal: o presente e o passado e o futuro, entre o código e a imagem, entre o “já e o ter acontecido”. É o momento dinâmico, o momento verdadeiro, que segundo Ponty (1998), é com o que os filósofos contam, dentro de uma relação consigo mesmo e com o outro, não tendo sentido o sacrifício de um a qualquer dos envolvidos. A verdade corre simultaneamente por toda parte, correndo o risco de nunca estar inteiramente em algum lugar. O instante criativo, o presente-passado é para Pierre (2002), “irrupção incontrolável de imagens” que é concebida e destruída ao mesmo tempo.

A conjunção de presente, de passado e de futuro, entre a matéria e a imagem, é o instante de tempo, que revela o momento dinâmico, a duração onde tudo acontece: “Um espetáculo não é um livro, um quadro, um discurso, mas uma duração, uma dura prova para os sentidos...” (NOVARINA, 2005, p. 15)

. O instante criativo desencadeia uma “irrupção incontrolável de imagens” (JEUDY, 2002, p.16) que é concebida e destruída ao mesmo tempo.

O olhar por sobre as formas de manifestação gestual simbólica e expressiva na dança, é assim explicado por percorrer caminhos movediços, pois a matéria, forma concebida e que concebe, fluxo contínuo e essencial é aquele de que devemos nos ater: o que rege e é regido, num diálogo constante. Enxergar o movimento no tempo e espaço é poder se certificar da instabilidade de se conceituar ou formar uma receita do fazer, pois o artista, o pintor-bailarino, revela sua síntese disjuntiva que o permite percorrer inúmeras personagens, é ir além do elemento forma-corpo sem abandoná-lo; mas transfigurá-lo ou tornar visível sua força, é dar chance, também de se ouvir e deixar o corpo falar.

Isso corresponde dizer que nas artes, seja na pintura ou na cena coreográfica é o corpo visível que destaca as forças invisíveis deixadas ali e se resolvem em marcas vivas através da atividade perceptiva que perpassa pelas inúmeras sensações que se têm. “O corpo visível mostra as forças invisíveis pelas marcas que elas deixam nele, e tornando-as visíveis ele as potencializa e eleva a um nível superior, vital” (PELBART, 1989, p. 104).

Quanto à origem de uma nova força, Pelbart ressalta que se trata de um desafio ao convencional e as pespectivas herdadas da realidade. A nova força requer a extração daquilo que é improvável e da vida naquilo que ainda adormece, numa luta constante contra os clichês, imagens experimentadas, probabilidades e da “figuratividade pré-pictural”. É, numa referência à pintura, preciso limpar a tela e subverter as figuras deixando-as livres, deformando-as, deixando-as de ser representativas para conjugar um misto de formas, que traduzem em si a ressonância de uma força.

A tela pintada, assim como o gesto é o corpo visível que destaca as forças invisíveis deixadas ali e se resolvem em marcas vivas através da atividade do ofício e da criação que perpassa pelas sensações e percepções que revigoram e transformam.

Os elementos específicos das linguagens ou os mecanismos do ofício são os “alimentos” de que o semiólogo Roland Barthes fala sobre o pintor Bernad Requichót. Estes são diferentes e digeridos pela mão, que faz esconder ou revelar o que se pode trazer de valioso. A mão, que revela aquilo que dá o sentido vigoroso e original e inevitável, é aquilo que, ao acaso, se põe ao entorno da imagem: a espuma da matéria. Em Requichót, é a matéria que contém o eco de seu signo, o resíduo que “desfigura o alimento porque extrapola sua função”, o “objeto deformado” (BARTHES, 1990, p.197) pela mão que se deixa levar.

Requichót, então se lança ao imaginário como um jogador que se arrisca em tacadas estratégicas, em busca de soluções para suas novas empreitadas culinárias. A sua coragem de arriscar na arte está na vida, está no homem, no seu próprio corpo e na própria matéria.

A obra, portanto não se fixa. Seu fim é sem fim, transforma-se. São as marolas provocadas pela pedra atirada, são as ressonâncias de o pintor abstrato Wassily Kandinsky[1] descreve:

(...) os movimentos nos envolvem – jogo de linhas e de traços verticais e horizontais, inclinados pelo movimento em direções diferentes, jogo de manchas coloridas que se aglomeram e se dispersam, de uma ressonância às vezes aguda, às vezes grave. A obra de arte reflete-se na superfície da consciência. Encontra-se “além” e, quando a excitação cessa, desaparece da superfície sem deixar vestígios (...) aí temos a possibilidade de penetrar na obra, de nos tornarmos vivo nele e vivermos sua pulsação por todos os nossos sentidos (KANDINSKY, 1997, p. ?).

Na busca, o trabalho obriga a afastar o fim, ele é infinito, se expõe como processo e procura representar o prazer por meio de algo. Esta é a pintura de Requichót. Este é o gesto poético da dança contemporânea. O prazer do gesto advindo de um desejo interno, o aquém do toque na tela, o aquém do movimento na dança, o gerador amplificado. É em Helenita Sá Earp[2], quando descreve a magia do gestual na dança, o “espírito criador” em Wassily Kandinsky (2000, p. 181), a força divina do elemento.

A dança, para Helenita Sá Earp, deverá em seu papel de verdadeira arte, contribuir para o conhecimento específico da linguagem bem como na busca pela integração do movimento num ato fundamental para a plenitude e o desenvolvimento da criação. Seus estudos dão conta de uma poética[3] do movimento, no que concerne a um “saber poético como saber criativo” (DANTAS 1996, p.54).

Em sua compreensão profunda, despertar-se-á um gesto totalizador em diferentes aspectos que envolvem o impulso criador pleno. Isto, entretanto, nos leva a perceber que o movimento em dança deve estar desvinculado de um simples ato automatizado; dessa forma, não representaria o verdadeiro movimento artístico integrado. O movimento integrado é um gesto da totalidade do ser, no qual ele comunga, de maneira harmoniosa, o conhecimento e a sensibilidade, frutificando em um domínio da téchne[4] no movimento, enquanto se dança, e na composição de uma cena coreográfica. Acrescenta-se que, no parâmetro do movimento integral, o valor da sensibilidade, da totalidade, infinitude e da vitalidade criativa é o que o eleva à idéia da obra de arte como ato de criação. “O gesto do artista - ou o artista como gesto” (PONTY, 1999, p. 146).

Isso quer dizer que a técnica propriamente dita, é resultado do diálogo sutil entre os fatores que ‘ligam’ a imaginação, a sensibilidade, e a escuta à matéria, que integram o corpo ao espaço e ao objeto, que ligam a “necessidade interior” (KANDINSKY, 1998, prefácio) à forma, e que se processa no instante da criação. A técnica portanto é instantânea e dinâmica, assim como o é o ato criativo. A técnica está na criação, na sutileza da criação, no diálogo da criação, na complexidade sutil da feitura, ou melhor, no fazer, verbo de ação, naquilo que envolve o todo do humano em sua atividade, na produção dinâmica e transformável. Enfim a técnica é a própria dinamicidade da criação, seu momento de diálogo e correspondência do mais ínfimo e íntimo do homem consigo mesmo e com seu meio. A técnica é a produção de si mesmo de um mundo que se filtra pelo íntimo complexo ato criativo.

Quando se percebe, se estimula a capacidade de interagir consigo mesmo, evocando diálogos ente o mundo e o ser; e com o objeto da obra de arte, trazer ele para o seu domínio corporal, fazendo dele parte do seu ser, de processá-lo, codificá-lo, traduzi-lo, interpretá-lo, utilizando fontes da sua sensação, das suas experiências anteriores, ou vivências, sua cultura, do seu sentimento e de fontes da cognição, pois o pensamento se processa por todas estas portas que se abrem para a informação. A inteligência se processa por meio do entendimento que se resolve na união destas várias fontes de absorção. Portanto a arte está a serviço do desenvolvimento integral do homem, que se satisfaz na formação e concretização do símbolo. O resultado formal é a realização ou a presentificação da capacidade de entendimento e desenvolvimento de uma idéia.

O ato de criação é um produto muito mais proveniente de sentimentos e intuições do que operações puramente lógicas. O ato de criação é segundo Luigi Pareyson (2001), o ato de fazer ou exercício de formatividade, isto quer dizer que a criação ou o perfacere se realiza na própria invenção e no modo de invenção. Melhor dizendo, na forma concebida enquanto realização concreta necessária e no processo de construção, na nova maneira de conceber, na invenção de novos processos de feitura ou no exercício de feitura, no como. “Questões que se preocupam menos com o ‘porquê’ das coisas que com seu ‘como’” (FOCAULT, 2003, p. 82).

A feitura em si é de suma importância, pois significa “êxito artístico”. A extensão da arte revela o pensamento que não pode ficar apenas neste âmbito: “já que a obra existe só quando é acabada, nem é pensável projetá-la antes de fazê-la e, só escrevendo ou pintando, ou cantando é que ela é encontrada e é concebida e é inventada” (PAREYSON, 2001, p.26).

Envolve um misto de rebeldia, de negação ao cânone, ao pré-estabelecido, um desconforto com o que já há, um ato subversivo que renega e propõe o novo. Isso envolve dizer que ao procurar o novo, o inusitado, o desconhecido, o artista se envolve, pela criação, num diálogo entre que se revela e o que vela, pois não somente em relação ao que já está criado, mas o ato em si, deriva de uma escolha que põe em jogo a manipulação da matéria que na dança se confunde com o corpo e com o movimento.

A técnica é discutida em Pareyson um entremeio de aplicação árida, de domínio técnico operacional dos meios artísticos e de um domínio sensível, que perpassa pela fluência da imaginação, da intuição e da escolha. Portanto em sua definição de ‘técnica externa’ e ‘técnica interna’, se classifica pela união do sinal físico, ou da concretude formal, com o próprio ato de criação.

O exercício ‘per si’ não terá nenhuma função senão for canalizado para a vontade de expressão, “porque a arte só nasce desta última, de modo que o exercício per si, não tem nenhuma relevância artística, porque, ou coincide com a produção de uma obra, e então é arte, ou não leva à produção de uma obra, e então está fora da arte” (PAREYSON, 2001, p. 168).

A técnica reside na destinação e manipulação das ferramentas artísticas. Algo na arte se aprende, talvez nem para todas as técnicas sejam eficazmente utilizadas para a realização de uma obra, mas o aprendizado não se limita somente aos meios técnicos operacionais de uma dada linguagem artística, recaindo também na educação sensível onde se desenvolvem o senso crítico, noções de valores, seja ele, pela estética, noções de disciplina e desenvolvimento da capacidade de consciência emocional. Há um grande estímulo a componentes responsáveis pela relação do homem consigo mesmo e com seu meio através do estímulo à observação, percepção e sensação.

Portanto a técnica não se refere somente ao domínio dos meios de feitura mas do processo de feitura. E isso envolve tanto de domínio do ofício quanto de um domínio romântico de liberdade e de sensibilidade do ato criativo. “quem separa menos rigorosamente e confia de bom grado na memória imitativa pode se tornar, em certas condições, um grande improvisador; mas a improvisação artística se concentra muito abaixo do pensamento artístico selecionado com seriedade e empenho. Todos os grandes foram grandes trabalhadores incansáveis não apenas no inventar, mas também no rejeitar, eleger, remodelar e ordenar” (NIEZSCHE, 2000, p. 120).

A técnica não está somente na manipulação de uma determinada qualidade de movimento, ou na sua trajetória definida, na ótima orientação espacial de uma transformação de linhas do corpo, está na melhor qualidade de movimento, na melhor trajetória definida, na melhor transformação de linhas que se realiza em um único instante de diálogo. A este ‘melhor’ designa-se a capacidade de integrar a idéia de algo com a sua concepção, à grosso modo. Designa a capacidade de dialogar com as mais íntimas relações da intuição, do conhecimento da gramática, da escolha, do modo de concepção escolhido,da habilidade de construir em vida concreta e da crítica incessante e recorrente que participa de todo este processo

A questão da técnica recai num estado que interconecções entre alguns aspectos que se mostram intrínseco no ato criativo. As relações dialógicas abarcam um trabalho da matéria que passa pela “mão” e pelo mistério da “noite” (NONARINA, 2003, p.19) ou pelo “espírito do artista”, (KANDINSKY 1998, prefácio). Na “mão” é que é possível a transformação de algo que ainda está por vir, de algo que ainda se encontra sob a escuridão da noite e só se revela na ação artística quando passa pelos canais do homem. É na mão, no corpo, nas aberturas do mais íntimo sensível da carne que a matéria crua é preparada. É quando a matéria cai que ela pode ser trabalhada e desperta para a arte. “Por outro lado, as possibilidades e as sugestões que o artista sabe fazer-se dar pela matéria, não é ele quem as cria ou que as confere a ela: ele apenas as despertou nela, de acordo com a sua particular constituição, e é bem ela quem as oferece e propõe a ele” (PAREYSON, 2001, p. 164). Portanto, é jogo de forças.

Valère Novarina[5] descreve o reconhecimento de um espaço de atuação de todo o movimento da matéria-palavra, que por vezes não quer se determinar em sentido mas sim, fazer-se levar por labirintos dos espaços, as nuances do sopro de um corpo que se abre simultaneamente à sua dobra, ao seu avesso.

A batalha é incessante, na trincheira do diálogo, luta entre o corpo que impulsiona o gesto, que brinca em capturá-lo, tensiona o pensamento ao nome que se resvala pelos ralos da ação dinâmica num jogo misto da caça e da fuga. Os pólos múltiplos conseqüentes da libertação se afunilam no confinamento do gesto que o pensamento trata de desestabilizar: o jogo das tensões. Tal luta enfadonha espelha-se na analogia da dança dinâmica das partículas subatômicas da matéria conferida pela física moderna: transformação e interação, pois se tratando de ondas, sua existência não pode ser separada de sua atividade. Portanto as palavras na qual se refere o teatrólogo Novarina, como campos de confinamentos de atividades de movimento constante entre os espaços que são propriamente a matéria em ação, ou matéria como a própria ação: a matéria da fala, a matéria do gesto.

O aspecto dinâmico da matéria emerge da teoria quântica como conseqüência da natureza ondulatória das partículas subatômicas e é ainda mais essencial na teoria da relatividade; aqui, matéria não pode ser separada de sua atividade. As propriedades das partículas subatômicas só podem ser compreendidas num contexto dinâmico, ou seja, em termos de movimento, interação e transformação (CAPRA, 2006, p. 148).

E a luta continua onde não há vencedores nem perdedores, mas uma interação necessária para aquilo que, não se encontra, mas que coincide nos entrecruzamentos do diálogo, que se interpenetra no sopro da respiração. É a dança das palavras, da fala e do pensamento num movimento de ir e vir, de cozimento e de degustação que se digere e se prepara novamente, na cozinha de Barthes.

A fala é o elo que liberta. As palavras buscam o pensamento que as desfaz; o pensamento se liberta pelas palavras que captura: entre as palavras e a fala e o pensamento, há desde sempre um combate, uma luta que não pára. Em toda fala, ouve-se esse acerto e esse desacerto que é nossa libertação pelas palavras. Pensar é um rapto. Há perpetuamente uma cena de caça no espírito (NOVARINA, 2003, p.18).

No jogo dos espaços, o que Novarina descreve é que a fala não nomeia, mas sim, nos aproxima daquilo que nos falta. Se eu me chamo Lara, me aproximo de mim mesma assim como me ativo para meu próprio corpo que se quer chamar. Por estes mesmos caminhos de ação, é dançada a fala, os gestos. Na distância despertada pelo sopro do corpo, abre-se a passagem para o mundo dos conflitos e dos segredos de nós mesmos.

Toda fala verdadeira guarda sempre para nós essa face escondida. É porque ela nos vem da noite. É de noite que todos nós repetimos nomes e começamos a falar; é de noite que pela primeira vez ouvimos. Quando falamos, no fundo das palavras, há a lembrança dessa primeira partilha no escuro. Há na menor palavra que seja um som escondido e uma presença invisível, um fragmento, a troca e a passagem de um a outro de uma parte de noite ( Ibid, p. 19).

A fala, assim como o gesto, trás consigo a condição existencial da matéria que desde as teorias físicas modernas nos revelam, concernem na transformação de algo que em vias de acesso pela fala e pelo gesto desestabilizam as espacialidades nos carregando a novos lugares, se é impossível prever-mos o lugar exato em que uma partícula poderá estar, tanto será a inconstância e a liquidez da fala e do gesto que transita por interiores de nós mesmo e que nos permite fluir pelo interior da palavra. Na fluidez dos líquidos a se faz a sua existência. Na transformação constante dos campos ondulatórios do corpo que fala e movimenta-se. Na ação dinâmica e tensa se pronuncia o sutil sopro que faz mover a fala, que faz nascer o gesto.

Qualquer palavra, seja ela a menor de todas, é alavanca do mundo. Qualquer fala, ou gesto, qualquer sopro de respiração é um desvio da morte e um encontro com o mundo, mesmo o sopro presente no silêncio. É o sopro em potencial de uma espera latente de vida, de oxigênio, mas que em mesmo em meio à ausência da palavra se designa ao mistério. “O mistério é incompreensível porque ele te compreende” (ibid, p. 20). O mesmo acontece ao movimento em potencial designado assim por elemento da fenomenotécnica desenvolvida por Helenita Sá Earp ao pensar o gesto que estar por vir em eminência de transbordamento.

Para Earp, dançar é muito mais do que manipular os movimentos, é um habitar. Todo movimento é dançável, quando nele habita uma potencialização poética. Neste pensamento do movimento, postulava uma dança em constante abertura nascente. Não buscava consolidar um novo método ou técnica de dança moderna. Mas sim, várias possíveis fenomenotécnicas necessárias à expressão da eclosão de cada fenômeno corporal desejado. Eclosão de fluxo do se que dança constante interação entre o imaginar, o conhecer e o executar (LIMA, 2002, p.9).

O movimento na concepção de Helenita Sá Earp, surge desta mesma concepção da atividade criadora de que Novaina pontua. A espreita da liberação é a integração no gesto que se desvela em potencialidades que revelam o espaço. É o encontro das forças que convergem os esforços para a dinâmica presença do espaço corpóreo.

Para Earp, dançar é muito mais do que manipular os movimentos, é um habitar. Todo movimento é dançável, quando nele habita uma potencialização poética. Neste pensamento do movimento, postulava uma dança em constante abertura nascente. Não buscava consolidar um novo método ou técnica de dança moderna. Mas sim, várias possíveis fenomenotécnicas necessárias à expressão da eclosão de cada fenômeno corporal desejado. Eclosão de fluxo do se que dança em constante interação entre o imaginar, o conhecer e o executar (LIMA, 2002, p.9).

Se trata de uma doação de órgãos que não cessa até que em algum instante o despir seja completo, até que os buracos sejam invadidos e invadam; até que se toque pelas aberturas e se chame pelas vibrações das forças. Até que, haja uma interação plena entre os aspectos físico, mental e emocional e que a plenitude do gesto seja carregado de energia geradora de transformação do simples movimento em movimento de dança. Gesto carregado de harmonia, intenção interação, integração e criatividade. A criatividade para Earp é fruto de uma escuta do corpo que se desmantela em outros ao mesmo tempo que se carrega de uma ação criadora, transformadora de todo um universo.

Porque que o sopro da passagem se dilui na passagem do instante e a dança dinâmica transforma o ser para outro e outro, numa eterna ressuscitação do ser que nunca se alcança mas se deleita e se revigora ao percorrer novos corpos que se apresentam.

O resultado não importa tanto, o bailarino não quer expressar, não quer interpretar, ele quer antes de tudo, abrir-se a novas experienciações. Ele quer experimentar o entremeio, no muro, no vácuo. O que importa para o bailarino é a carne que quase morre e renasce em um fluxo constante.

Não diria que a forma e o tema a ser engolido não esteja presente, mas não os somente. O que importa no gesto é o jogo, é brincar de vivo-morto. É brincar com a vida, quando se manipula o sopro, é do potencial que se transborda e faz viver. Viver a carne num corpo pelo avesso. A abertura que o corpo refresca, o corpo no movimento é que move e dá vida à coreografia. É o vivo-morto. É no brincar de reinventar sempre, a cada gesto, numa nova forma de driblar a morte. Enganar a foice e se permitir mostrar-se como quando se chega ao mundo pela abertura do ventre materno. Nu, sem roupas, mostrando seus órgãos, esgarçando buracos. Amassando o íntimo, trazendo o ínfimo de dentro, o bailarino se chama para a cena. É estar constantemente na passagem dos buracos do corpo, num corpo sem órgãos, pois os órgãos estão no fora para serem digeridos. É mostrar a dobra, e na dobra, a cada nova abertura par a outra dobra. É no entremeio, no vácuo do corpo que teima cada repetição, mostrar sua nova maneira de viver e sua própria vida que entra em jogo numa roleta russa a cada apresentação.

O jogo da roleta russa onde a morte é o cheiro que vem e se esvai pelo movimento que desloca ar e transforma o corpo do bailarino em um ser novo que não mais ele, nova vida, novos seres nascem, nascem de buracos, nascem não mais sujeitos, mas coisas, troços, massas, contornos, amassados, neblinas, órgãos, sangue, pontos, linhas, suspiros, sopros, ares, líquidos, bolhas, pedras, secreções, sucções, animais...

O bailarino se destrói de si, se aniquila, se transforma, se mata, se mastiga a cada gesto, “até se tornar invisível” (ibid, 2005, p.29). O corpo do sujeito desaparece. Aparecem imagens o nascimento de imagens que não cessam o desespero do aparecimento, a morte que as leva, para dar lugar a novos nascimentos. Fluxo, líquido, os pontos e linhas de um corpo líquido que se deixa embalar pelo leva-e-traz das ondas.

Em cada um de nossos gestos, toda palpitação do mundo, todas as suas interações estão presentes, refletem-se e se repetem, concentram-se como em um espelho convergente. Neste diálogo de movimento entre nosso ser ínfimo e o todo, é a invisível e incessante vida do todo que respira com nosso alento e pulsa com o nosso sangue. Viver é, antes de mais nada, participar desse fluxo e dessa pulsação orgânica do mundo que está em nós, desse movimento, desse ritmo, dessa totalidade, porque, mesmo durante nosso sono, vela em nosso peito a lei da dupla batida, a da nossa respiração e a do nosso coração (GARAUDY, 1980, p. 26).

O corpo da dança desenvolve no movimento a práxis de um sistema fluido e líquido. É o poder liquefeito da forma. O corpo conserva seu caráter fluído e deslizante por mais que as formas tendem a amarrá-lo: jogo de tensões. “O corpo está em constante movimento, e o movimento faz parte da natureza do corpo. Não existe estaticidade na corporeidade” (EARP, 2000 apud LIMA, p.28)

A técnica, portanto, está onde não há mais cobranças, onde não há fórmulas, ou padrões, mas há caminhos abertos, onde há possibilidades de passagens, onde há possibilidade de escuta, de libertar-se pelos buracos que se formam no ato criativo. Ela confundi-se com a criação, neste sentido, pois o que se joga, é o jogo da matéria a ser desvelada. Tanto um quanto outro fazem parte de um campo de batalhas, onde tendo a base operacional como subsídio importante, trás a tona o trabalho da “mão” que transfigura a matéria, transformando-a através da elevação máxima e dinâmica de uma abertura sensível pela evocação da energia criadora. No mesmo tempo que “não há arte se ofício” (Pareyson, 2001, p.170), “o ato artístico é todo criativo”. “e esta criatividade de arte e ofício, na verdade, não significa que a técnica se dissolva na pura criatividade da arte, mas antes, que a arte se encarna necessariamente numa atividade fabril.

Então as regras de ser cânones ou preceitos, fórmulas ou receitas, mas tornam-se prescrições provocadoras e estimulantes; não aparecem mais como constrangedoras, mas como cadeias voluntárias, indispensáveis para afugentar a facilidae dispersa e precisar a inspiração; não representam mais o extrínseco e convencional domínio da tradição, mas são advertências para tirar da arte precedente sugestões esteios para operações novas e inventivas; ou melhor, associam-se indissoluvelmente ao rito criativo da atividade artística, tornando-se, de quando em quando, modos de fazer, vias Ed execução, procedimentos artísticos, segredos operativos, ímpetos inventivos, promessas de eito, presságios de obras, garantias de sucesso (PAREYSON, 2001,p. 173)

Bibliografia:

ARNHEIM, Rudolf. Intuição e Intelecto na Arte. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

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BACON, Francis. Entrevista com Francis Bacon. Itália: Cosac e Naify Edições Ltda, 1995.

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CAPRA, F. O Tao da Física. São Paulo: Cultrix, 1983.

DUARTE, J. F. (2005). POR QUE ARTE-EDUCAÇÃO? CAMPINAS: PAPIRUS.

EARP, A. C. S. Aulas práticas e teóricas da disciplina “Fundamentos Gerais da Dança” e “Fundamentos da Dança A” do Curso de Bacharelado em Dança da UFRJ. Segundo semestre, 1995.

GARAUDY, Roger. Dançar a Vida. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.

JEDY, Henri-Pierre. “O corpo como objeto de arte”.São Paulo: Estação Liberdade, 2002.

KANDINSKY, W. Ponto e Linha sobre o Plano. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

KANDINSKY, W. Do espiritual na arte. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

LABAN, R.V. Domínio do Movimento. São Paulo: Summus, 1971.

MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

MEYER,A. Aulas práticas e teóricas das disciplinas “Fundamentos da Coreografia A” e do curso de Bacharelado em Dança da UFRJ. Segundo e primeiro semestres, 1998 – 2000.

MOTTA, Maria Alice Monteiro. Teoria Fundamentos da Dança: Uma abordagem epistemológica à luz da Teoria das Estranhezas. Dissertação de mestrado em Ciência da Arte pela Universidade Federal Fluminense. Niterói: UFF, 2006.

NIETZSCHE, Friedrich. Humano, Demasiado Humano: Um Livro para Espíritos Livres. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

PAREYSON, Luigi. Os Problemas da Estética. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

PELBART, Peter Pál. Da Clausura do Fora ao Fora da Clausura. São Paulo: Editora Bradsiliense, 1989.

SOUZA, Naum Alves de. Nijinsky. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1989.




[1] Kandinsky foi determinante para uma teoria geral da pintura abstrata ou não-figurativa e acabou por influenciar muitas concepções da criação na dança moderna como nos estudos de Earp acerca do movimento em Dança, tratados no desenvolvimento da pesquisa.

[2] Professora Emérita de dança da UFRJ. Introdutora da dança no ensino das universidades brasileiras em 1939. coordenou cursos de Pós Graduação Lato Senso de 1941 até 1980, onde formou inúmeros profissionais que disseminaram a dança moderna por vários estados do país. Diretora artística e coreógrafa da Cia de Dança Helenita Sá Earp, onde representou artisticamente a UFRJ. Foi marcada pela qualidade e vanguardismo de seus espetáculos coreográficos. Na sua trajetória acumula cerca de 720 apresentações entre eventos nacionais e internacionais, com várias premiações em significativos festivais no Brasil onde destacam-se: as turnês realizadas nos Estado Unidos, Portugal e Holanda em 1951 e 1959, apresentou-se no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro em 1959, participação no I Festival de Danças do Brasil na Universidade do Paraná em Coritiba em 1962, no Congresso Mundial de Educação Física e Desportos em Madri em 1965, além de inúmeras apresentações nas capitais do país pelo Plano de Ação do MEC em 1973. Já sob coordenação da professora Ana Célia Sá Earp, pode-se citar as participações nos festivais Latino-americano de Dança Contemporânea, no primeiro Simpósio Internacional do Cuballet, ambos realizados no México em 1991 e 1992, na ECO 92, no Festival de Dança Contemporânea em 1993 em Salvador, premiações no IX e X de Dança de Joinville em 1991 e 1993, como também realiza constantes temporadas até o presente, em teatros do Rio de Janeiro e outros estados do Brasil. In: LIMA, André Meyer Alves. A Poética da Deformação Gestual na Cena Coreográfica. (Dissertação de Mestrado). Niterói: UFF, 2002, p.III.

[3] Segundo Dantas, a palavra poética tem sua origem grega: poietikós, que produz, cria, que forma e, poieio: verbo que significa criar, compor, construir, agir com eficácia.

[4]“Como epicentro de toda práxis, a teoria Fundamentos da Dança se excede para além de conteúdos normativos e causais, deixa de ser vista como um mero instrumento para ser compreendida como um modo de desvelamento, um dilatador do espaço da criação(...)é uma atitude dinâmica de fluxos de acesso à verdade (alethéia) do movmiento” (MOTTA, 2006.p.122).

[5] Valére Novarina é pintor, autor e teatrólogo. “Como seu pensamento só faz sentido ao ser ouvido, já que constituído por ritmos e sonoridades, o teatro passa a ser o lugar de percepção dessepensamento, pois o lugar onde as palavras são ouvidas, vistas e sentidas” (Novarina, Valére. Diante da palavra (tradução de Angela Leite Lopes) – Rio de Janeiro: 7 Letras, 2003.

segunda-feira, 5 de maio de 2008

CRÍTICA DO ESPETÁCULO GIRAKANDOMBE

Ou: Carta a um certo professora da UFBA.
Por Marta Peres

Li n'O Globo' de ontem (01/05/2008): Antonio Natalino Dantas,
coordenador da Faculdade de Medicina da UFBA, afirmou que 'o berimbau
é um instrumento para quem tem poucos neurônios', o que seria uma
evidência do 'QI' baixo dos baianos; manifesto assinado por 113
pessoas, iniciado ao se intitularem 'intelectuais da sociedade civil',
é levado ao STF manifestar seu repúdio às cotas para negros e índios
nas universidades públicas. Seja qual for o posicionamento de cada um
a respeito do assunto, uma coisa é evidente: questionar o mito da
'democracia racial' brasileira é cutucar um formigueiro. Há racismo no
Brasil, certamente, apesar do Ali Kamel, mas seu pilar fundamental é
levantar a bandeira de que o Brasil não é um país racista... 'eu até
tenho um amigo negro...' é o chavão que atravessa séculos, repetido
pelo próprio Dantas, referindo-se à sua secretária. A 'chapa está
quente' na UFBA, onde reitor e alunos repudiaram as declarações
'infelizes' do coordenador.

Aproveitando o calor dos debates que enchem minha caixa de mensagens,
nestes tempos, uma boa pedida é assistir ao espetáculo "Girakandombe",
que faz parte do projeto Memória Corporal da Cultural Afro-Brasileira
da 'Cia de Dança Contemporânea da UFRJ', dirigido por Tatiana
Damasceno.

Sobre um cenário belo e simples, desenrola-se um diálogo rico entre
os bailarinos, ora em solos, duos, trios e grupos maiores, imagens do
telão, sem excessos, e objetos cênicos. Gira é a Roda, em que santos e
as entidades espirituais são cultuados pelo canto e pela dança. O
verbo Kandombe quer dizer orar, rezar. O elemento central do
espetáculo, desenhado no palco, é a encruzilhada, que remete à idéia
de se optar por um determinado caminho - sabe-se lá quem seja o
responsável por esta escolha, o indivíduo, o destino, forças
superiores, Deus ... - instante em que se fazem presentes as energias
de Exu e Ogum. Independentemente das crenças de cada um, quem não
ergue os olhos para o céu quando se vê frente à necessidade de
escolher entre um e outro, já que nos é impossível seguir por duas
trilhas diferentes ao mesmo tempo?

"Girakandombe" tem nas tradições afro-brasileiras o ponto de partida,
mas o trabalho não se restringe a um mero inventário do material
pesquisado. O gestual inspirado nos ritos afro-brasileiros serve como
fio condutor para uma pesquisa consistente em dança contemporânea, o
que justifica a eleição desta temática para o espaço do palco. Isto
porque, se fosse somente o caso de se 'demonstrar' os movimentos,
certamente, valeria mais a pena conhecer o rito em seu lócus, ou seja,
num terreiro propriamente dito. O que caracteriza este trabalho como
artístico é justamente o fato dele extrapolar a 'cópia' daquilo que já
existe na religião - e que tem objetivos muito diversos que os de uma
companhia de dança, e que 'vai muito bem, obrigado' -, para criar uma
linguagem própria, relacionando a movimentação a questões
existenciais, em especial, ao modo de estar no mundo nas metrópoles. A
tão corriqueira travessia da Avenida Rio Branco que leva ao Largo da
Carioca nos coloca diante de sentimentos difusos, entre a dúvida e a
certeza que nos move a seguir, ou não, em frente.

A discussão acerca das fronteiras entre cultura popular, manifestações
religiosas e expressão artística é um campo bastante controverso onde
não são raras acusações de apropriação indevida de elementos que,
segundo os mais puristas, geralmente oriundos da antropologia, não
deveriam ser 'retirados' de seu lugar de origem. Por outro lado, as
inevitáveis influências européias e norte-americanas estão presentes
nas construções artísticas de modo tão intenso que se torna um
exercício difícil não cair na armadilha de 'naturalizá-las'. O
virtuosismo atlético e geométrico dos bailarinos, somado ao olhar
'blasé', quando não triste, vazio, opaco, ou vidrado, vem se tornando
uma presença constante (e incômoda) nos espetáculos de dança
contemporânea e nos faz recordar muito mais referências estrangeiras
que brasileiras.

Não quero com isso defender uma idéia homogênea e redutora de
'brasilidade', mas o curioso é que, quando inspirado em elementos dos
'colonizadores', não se levanta qualquer objeção ao fato de estarem
sendo, também, 'deslocados' de sua origem. Neste sentido, a cena cuja
trilha sonora é constituída de palavras em inglês serve como uma
provocação inteligente para refletirmos sobre o que, de fato, seria ou
não 'nosso'. Além disso, pode ser que o fato dos bailarinos-criadores
partirem de uma pesquisa, não somente de movimentos, mas também
teórica acerca do conteúdo com que estão lidando, amplifique sua
presença em cena e não lhes roube o prazer de dançar, expresso num
olhar 'vivo'.

Aos que criticam que se levem ao palco elementos propriamente
culturais e étnicos, sob a justificativa do risco de perderem seu
vigor, é preciso esclarecer que uma obra de arte, cujos objetivos são
absolutamente diversos daqueles dos rituais religiosos, não visa, em
momento algum, 'reproduzi-los', mas sim, utilizá-los, dentre outros,
enquanto recurso, já que não existem receitas do que pode ou deve
inspirar a criação artística. O rico caldo de referências culturais
que nos constituem é um material instigante para a construção
coreográfica. Müller refere-se às artes cênicas como um campo
privilegiado para se transformar a vida em curso em matéria de fruição
estética e reflexiva, ou seja, em obra de arte. Certamente, não se
trata de uma tarefa fácil, incorrendo-se nos riscos de cair em
clichês, de diminuir a potência de algo que perde seu sentido ao ser
levado ao palco, ou de tornar um momento cansativo para o público
arrependido de ter saído de casa.

Felizmente, a Cia de Dança Contemporânea da UFRJ e Tatiana Damasceno
'acertaram a mão' na composição destes elementos. Quem sabe, se o
Professor Dantas, da UFBA, racista assumido, assistisse a este
espetáculo, onde o simples é complexo e intenso, e nem por isso é
fácil, ele não fosse tocado a ponto de reformular seus conceitos a
respeito de nossas raízes africanas e chegasse a reconhecer seu
valor... Não, talvez já fosse querer demais... O espetáculo pode ser
muito bom, mas, tem gente que só nascendo de novo...

quinta-feira, 10 de abril de 2008

DANÇA E ANIMAÇÃO CULTURAL: “IMPROVISAÇÕES”

Vamos pensar melhor nosso papel como artistas com esse exelente texto dos professores:

Profa. Ms. Maria Inês Galvão Souza[1]

Profa. Ms. Patrícia Gomes Pereira[2]

Prof. Dr. Victor Andrade de Melo[3]



[1] . Membro do grupo de pesquisa “Lazer e Minorias Sociais”/Escola de Educação Física e Desportos/UFRJ. Coordenadora do núcleo “Dança, Cultura e Sociedade”. Professora do curso de bacharelado em Dança/EEFD/UFRJ.

[2] . Membro do grupo de pesquisa “Lazer e Minorias Sociais”/Escola de Educação Física e Desportos/ UFRJ. Coordenadora do núcleo “Dança, Cultura e Sociedade”. Professora do curso de bacharelado em Dança/EEFD/UFRJ.

[3] . Coordenador do grupo de pesquisa “Lazer e Minorias Sociais”/Escola de Educação Física e Desportos/ UFRJ. Coordenador do núcleo “Cinema, Cultura e Sociedade”. Pesquisador do Programa Avançado de Cultura Contemporânea/ UFRJ (Pós-Doutorado em Estudos Culturais).

RESUMO

Entre nossas propostas de trabalho está a de melhor compreender os mecanismos e as peculiaridades da animação cultural. Inserido nesse esforço, temos nos dedicado a investigar as especificidades das diferentes linguagens artísticas. Nosso objetivo nesse artigo é apresentar reflexões sobre a incorporação da dança em projetos de animação cultural, a partir de um olhar crítico sobre o próprio estágio de organização da arte. Mais do que pensar um processo de educação pela dança, estamos interessados em refletir sobre a educação para a dança e seus desdobramentos, já que consideramos que essa tem sido uma dimensão menos discutida no âmbito do campo acadêmico da Dança e da Educação Física, bem como nos esforços de pensar o campo do lazer.

Vai começar o espetáculo (toca a campainha)

“Só poderia acreditar em um deus que soubesse dançar”

F. Nietzsche

O grupo de pesquisa “Lazer e Minorias Sociais” está organizado a quatro anos na Escola de Educação Física e Desportos da Universidade Federal do Rio de Janeiro, envolvendo acadêmicos e profissionais de vários estágios de formação, de diferentes instituições acadêmicas. Seu objetivo é desenvolver estudos, investigações e projetos de intervenção que contribuam para aprimorar o conhecimento sobre temáticas relacionadas com a problemática do lazer e sua presença e contribuição para com as minorias sociais, tendo em vista cooperar para a construção de uma sociedade mais justa, sem preconceitos, estereótipos e discriminações das mais diferentes ordens[1].

Entre nossas propostas de trabalho está a de melhor compreender, articulando teoria e prática, os mecanismos e as peculiaridades da animação cultural, entendida enquanto uma intervenção pedagógica, uma tecnologia educacional que possa contribuir para reverter o quadro de privatização e midialização da cultura notáveis no atual estágio da sociedade, fruto inclusive do avanço tecnológico e do quadro sócio-político-econômico[2].

Inserido nesse esforço, temos nos dedicado a investigar as diferentes linguagens artísticas, suas peculiaridades e as possibilidades de serem incorporadas em projetos de animação cultural. Procuramos identificar as barreiras e os limites que dificultam sua fruição por indivíduos de diferentes extratos sociais, buscando novas metodologias de trabalho, tendo em vista reverter esse quadro e potencializar um possível olhar sensível de cada ser humano, vislumbrando a promoção de transformações sociais.

No que se refere à dança, temos já estruturados dois projetos de pesquisa e um de intervenção. Num desses projetos, “Afetos em dança”, investigamos a linguagem coreográfica e a comunicação com o público. Buscamos identificar possíveis parâmetros norteadores da prática da composição coreográfica, selecionando assim elementos que possam embasar um processo de educação para a dança, que possa permitir um acesso mais efetivo e constante da população a tal manifestação cultural.

No outro projeto, “Análise crítica dos projetos sociais de dança na cidade do Rio de Janeiro”, investigamos as peculiaridades do desenvolvimento de projetos de dança em comunidades de baixa renda no município, levantando indicadores que possam contribuir para potencializar tais iniciativas.

O projeto de intervenção, “Quartas-feiras da improvisação”, procura articular as reflexões de pesquisa com uma prática conseqüente do ensino da dança, a partir de novos olhares. Entendemos a prática da improvisação como uma das possibilidades de promover uma discussão sobre a dança no âmbito do lazer.

O nosso intuito nesse artigo é apresentar algumas de nossas reflexões construídas no decorrer dessa trajetória. Nosso objetivo é pensar a dança-educação e a incorporação da linguagem em projetos de animação cultural, a partir de um olhar crítico sobre o próprio estágio de organização da arte no momento atual. Mais do que pensar um processo de educação pela dança, estamos interessados em refletir sobre a educação para a dança e seus desdobramentos em projetos de animação cultural, já que consideramos que essa tem sido uma dimensão menos discutida no âmbito do campo acadêmico da Dança e da Educação Física, bem como nos esforços de pensar o campo do lazer.

Este artigo não se trata de uma “obra fechada”, pronta, mas sim “estudos de movimento” em plena efervescência de criação, carregando logo a marca da provisoriedade. Como numa prática de montagem coreográfica - que relaciona as diversas linguagens, imagens, o contexto social, o domínio corporal, o intelectual e o sensível - este artigo busca dialogar com vários aspectos, considerando que o conhecimento, e as obras de arte, estão sempre em transformação, como uma “obra aberta”, um mosaico de possibilidades de configurações.

O que apresentamos são “improvisações”, da forma como as compreende a dança contemporânea, fundamentais não só na construção de coreografias originais, que busquem novas possibilidades de movimentações corporais, como também de novos sentidos e significados para o ato de dançar. Não trata este artigo, assim, de construções inconseqüentes ou inconscientes, mas de passos introdutórios de um processo de reflexão para a consolidação de uma intervenção embasada, sempre em diálogo dialético com uma teoria em construção.

Tocada a terceira campainha, comecemos o nosso espetáculo!

Ato 1 – O que é a dança hoje?

Reconhecemos o nascimento da dança já entre as sociedades primitivas, mas a sua estruturação, enquanto campo sistematizado de conhecimento e espetáculo, nos remete principalmente ao século XVII, com o desenvolvimento do balé clássico.

A dança nos seus primórdios era uma manifestação coletiva, construída no âmbito das tradições da cultura popular. Posteriormente, quando passa a ocupar, na forma de balé, os salões das cortes, principalmente francesa e italiana, vemos um processo paulatino de separação dessa prática do conjunto geral da população, a partir da construção de novos sentidos e significados interessantes a um projeto de elitização.

A dança, que outrora era popular e que não estava dissociada da vida do povo, nesta nova conformação, passa a ser concebida como divertimento da aristocracia cortesã, assim como um dos elementos para afirmar o prestígio e o poder deste grupo dominante.

Obviamente que isso não significou que a população deixou de dançar. Houve, e até hoje há, uma constante inter-relação, que deve ser compreendida à luz de um processo de circularidade cultural. Devemos lembrar, inclusive, que é justamente a partir dos passos, movimentos e gestos das danças populares que o balé iniciou seu desenvolvimento, a partir do entabular de um processo de refinamento aristocrático e de alta complexificação técnica. Contudo, não podemos negar que se criaram mecanismos de diferenciação, de valorização, destinando às danças das elites a preponderância na consideração de "melhor", mais "bonita" ou "mais adequada" forma de dançar.

No final do século XVII, quando o balé sai dos salões da corte e passa a ser apresentado em palcos italianos, esse quadro pouco se modifica: grande parte da população permanece ainda distante da dança teatral. Na verdade, além de ficar distanciada do povo, a arte da dança afasta-se de sua significação humana original. É nesta época que melhor se estrutura o método acadêmico de dança, com suas “regras invioláveis”. Valorizava-se a clareza e a harmonia das formas, a perfeição técnica, a geometrização do movimento. Não podemos esquecer que o balé clássico desenvolveu-se respaldado pelo pensamento lógico matemático que predominava na época de sua codificação. Nesse contexto, o estudo do movimento muitas vezes tendeu a ficar desconectado da emoção.

Notamos que com a criação do balé clássico, a dança passa a ser oferecida prioritariamente como forma de espetáculo, de consumo passivo, tendencialmente restrita a grupos sociais pertencentes à elite econômica. Como outras manifestações artísticas, a dança teatral também se estrutura como elemento de status e distinção para poucos que podem praticar e/ou consumir espetáculos, ainda mais que seus códigos se afastavam de uma construção coletiva.

Os rígidos cânones do balé clássico, apesar de terem sido questionados já no século XVIII por Jean-Georges Noverre, que propôs reformas na encenação e na formação dos bailarinos, objetivando resgatar a expressividade do movimento e a essência do ato de dançar, foram modificados somente no início do século XX, com o movimento da Dança Moderna. Ocorrem assim mudanças sensíveis em relação ao modo de pensar e praticar a dança.

Segundo Garaudy (1980, p.175) é com a dança moderna que se resgata o seu lugar “como expressão condensada da vida e da cultura, no coração da vida e na raiz da cultura”. Constroem-se outros sentidos e significados, busca-se não só uma nova forma de dançar, bem como novas intencionalidades para o ato de dançar, em movimentos que supostamente pretendem tornar a dança mais próxima do público, menos artificial, menos escolástica, questionando-se o rígido espaço ocupado pela técnica do balé clássico, preconizando-se a emoção e a relação da arte com a vida como fatores fundamentais a serem recuperados.

Com a contemporaneidade, há um processo de rupturas e permanências no que se refere à dança moderna e ao balé clássico. Trouxe-se para a dança, assim como para outras manifestações artísticas, o desafio do desenvolvimento de novas possibilidades para a linguagem, a busca de desconstrução do construído e a tentativa de estabelecimento de diálogos entre as linguagens, já embrionariamente observados nos movimentos das vanguardas artísticas européias no início do século XX (por exemplo, no futurismo e no surrealismo).

Se tais processos de desconstrução e construção e de diálogos interlinguagens são de fundamental importância, cremos, contudo, que a dança, assim como outras artes, enfrenta problemas similares na contemporaneidade. O que é dançar nos dias atuais? O que caracteriza a especificidade da linguagem?

Quando se questiona o rigor técnico da arte acadêmica, isso pode ser confundido com a não valorização da importância da investigação de elementos estruturadores da linguagem. Corre-se o risco de esvaziar a arte, dando espaços para o surgimento de um grande número de experiências confusas, referendadas por uma tendência de valorização apriorística do (supostamente) novo pelo novo, ora mais ora menos bem intencionadas. Vale lembrar que arte sempre tem algo (ou muito) de técnica e que a valorização da emoção e das subjetividades não pode significar o abandono dessa dimensão fundamental, sem a qual corremos o risco de uma construção sem parâmetros, pautada exclusivamente nas articulações políticas do campo, sem critérios claros de julgamento.

Um olhar sobre a dança na atualidade nos permite levantar algumas reflexões. Ao questionar os rígidos cânones do balé clássico, e por outro lado, na verdade, criar outros padrões restritos de possibilidades estilísticas de movimentos, apenas diferentes daqueles anteriores, não estaria a dança contemporânea a construir uma nova escola (o que indicaria uma certa uniformização de propostas coreográficas)? Uma total abertura de experimentações, a ponto de se distanciar da pesquisa dos elementos específicos da linguagem, poderia levar a construção de um sem-número de experiências sem consistência (o que daria espaços para "aventureiros")? Estaríamos encontrando um equilíbrio necessário para ver avançar as propostas de dança? O diálogo com outras linguagens tem ocorrido de forma fértil e construtiva ou tem antes apontado para o risco da diluição completa da linguagem original sem a construção de uma alternativa, apontando um processo de inovação pela simples inovação, montado para chocar o público? Imerso em tantas tentativas de chocar, o público pouco reage, até mesmo pela falta de conhecimento, passando a absorver o velho como novo. Não são poucos os apelos ao humor explícito, barato, fácil, que acaba por afastar a arte das sutilezas metafóricas da ironia que permite pensar.

Aliás, já que tocamos no assunto, quem é hoje o público de dança?

Ato 2 – Quem é o público?

Em certo sentido, grande parte da população continua a dançar no seu cotidiano e podemos, sem medo de errar, afirmar que é uma das linguagens que maior potencial tem de desenvolvimento, tendo em vista o espaço que sempre ocupou na história social e mesmo sua possibilidade operacional de implementação. Para dançar, precisamos somente de música, em certo sentido, pois nem a música é completamente imprescindível.

Não podemos esquecer também que há estímulos constantes da indústria cultural para o dançar. Basta lembrarmos das muitas "coreografias" que acompanham os produtos musicais por ela difundidos (coreografias de axé, de funk e dos grupos de pagode). Podemos até questionar a qualidade desses construtos (seu vocabulário corporal restrito e pobre, a ausência de liberdade de criação e expressão dos corpos, já que o público fica submetido à reprodução de certos modelos, parecendo mais um bando de robôs), mas não podemos negar a sua penetrabilidade. A sexualidade feminina muitas vezes é exacerbada, a tal ponto de a mulher se tornar um grande conjunto de partes do corpo expostas como “carnes”. Numa amostra gratuita, onde a concorrência pelo minuto do sucesso nas telas de televisão é o objetivo principal, todos dançam da mesma forma, como clones simbólicos de um momento de crise da identidade cultural.

Curiosamente, mas não contraditoriamente, se vemos um certo modelo linear e unidimensional de dança ocupar espaço por entre a população, assistimos também a platéias reduzidas nos espetáculos de dança na cidade do Rio de Janeiro ou, sendo mais precisos, um público restrito que se repete.

Efetivamente os espetáculos de dança não fazem parte das opções usuais de lazer de grande parte da população. Na verdade, aliás, quando falamos em espetáculo de dança, vem logo no imaginário da grande maioria a estilística do balé clássico. Evidentemente, este é um estilo que produz encantamento em função dos movimentos virtuosos apresentados pelos bailarinos, seus temas fantasiosos, seus belíssimos figurinos e cenários. Sem esquecer, principalmente, que a tradição de sua existência, que atravessa mais de quatro séculos, perpetua-se no imaginário coletivo. Já os espetáculos de dança contemporânea, que vêm ocupando espaço no cenário da dança em todo país e no exterior, tendo em vista seu poder de afetação e mudança de consciência, ainda encontram-se distanciados do lazer das camadas populares. Obviamente que não podemos também deixar de considerar isso à luz do contemporâneo processo de tensão no âmbito da cultura e da ação da indústria cultural.

Considerando tal quadro, apresentamos as seguintes questões:

* Estará o mundo da dança preocupado realmente com a ampliação/formação de platéia e a difusão dos "avanços" da linguagem, ou esse campo artístico está implícita ou explicitamente satisfeito com sua organização atual?

* Existem iniciativas de construção processual de uma educação para a dança ou continua-se a acreditar que o oferecimento de espetáculos esporádicos é o suficiente?

* Os projetos "sociais" de dança estão preocupados em educar a sensibilidade de seu público-alvo para o consumo ativo e crítico dos espetáculos coreográficos (o que por certo vai passar pela concepção de tornar os indivíduos produtores de cultura, não só quando descobrem que podem dançar de formas diferenciadas, mas também quando se desperta sua possibilidade de dialogarem criticamente com o produzido) ou pretendem seguir os mesmos modelos de formação de bailarinos, comemorando quando conseguem inserir alguns de seus membros nas companhias de dança estabelecidas no Brasil e no exterior?

Parece que se a dança contemporânea (re)incorporou de forma explícita e alvissareira o "popular" em suas construções, o povo continua de fora da dança, desconhecendo todas as possibilidades que a linguagem pode lhe oferecer.

Se estivermos certos nessas considerações, isso seria um problema dos professores, coreógrafos ou dos críticos e pensadores? Quem pensa a dança hoje?

Ato 3 – Quem pensa a dança?

Como se configura hoje um campo de pensamentos, dentro e fora das universidades, ligado à dança? Somos instados a reconhecer que, comparativamente com outras manifestações artísticas (como o cinema, o teatro e as artes plásticas), podemos identificar que a dança ainda não parece ter alcançado o mesmo grau de profundidade em suas reflexões.

Possuímos no Brasil poucos cursos de graduação e pós-graduação, poucos grupos de estudo estruturados, poucas publicações. A Associação Brasileira de Artes Cênicas (Abrace) possui um grupo de trabalho ligado à produção de pesquisas em dança, entretanto, notadamente estas se debruçam mais sobre a questão da produção de linguagem cênica do que explicitam preocupações com a arte-educação. Com poucos fóruns de discussão, tende-se à reprodução de discursos semelhantes, proferidos por um número restrito de “intelectuais”.

Isso pode certamente trazer reflexos no próprio desenvolvimento da linguagem. Se isto estiver aproximadamente correto, podemos supor que temos poucas tensões de natureza intelectual no campo, o que acaba pouco contribuindo para o avanço qualitativo da arte da dança. Isso pode ser identificado até mesmo nas críticas de jornais, que deveriam ser compreendidas como de fundamental importância para o diálogo com o público.

O que dizer então das reflexões ligadas à formação de platéia e dos projetos educacionais ligados à dança? Não nos parece absurdo dizer que, no contexto de nossa sociedade, onde os prazeres também são hierarquizados, esse deveria ser um de nossos maiores desafios: precisamos pensar pressupostos teóricos e considerações críticas que possam nos permitir colher indicadores de incorporação da dança em projetos para o grande público; metodologias que balizem a nossa ação enquanto animadores culturais que pretendem ter a dança como uma de suas estratégias de intervenção pedagógica. Afinal, o exercício de uma prática reflexiva, que se desenvolve de forma democrática, se mostra como potência para a formação do apreciador crítico da linguagem da dança.

O conhecimento e a apreensão de referenciais teóricos da dança como padrões avaliativos podem levar o grande público a um maior envolvimento afetivo e ao consumo crítico da arte, não só de agora, mas também do futuro. O espectador deixaria de realizar apenas uma catarse emocional e se envolveria com o objeto artístico apreciado também de forma racional. Como expõe Eisner (1999, p.91):

O que a arte proporciona é uma contribuição ampla ao desenvolvimento e às experiências humanas. Primeiramente, a arte, isto é, as imagens e eventos cujas propriedades fazem brotar formas estéticas de sentimentos, é um dos importantes meios pelos quais as potencialidades da mente humana são trazidas à tona. Nossas capacidades intelectuais tornam-se habilidades intelectuais à medida que damos a estas capacidades oportunidade de funcionar: o tipo de raciocínio necessário para vermos o que é sutil e complexo; para aprender como perceber formas de maneira que suas estruturas expressivas toquem nossa imaginação e emoção; para tolerar as ambigüidades enigmáticas da arte. Longe de ser uma atividade negligente, nosso compromisso com a arte nos faz empregar nossas mais sutis formas de percepção e contribui para o desenvolvimento de algumas de nossas mais complexas habilidades cognitivas.

É papel fundamental do professor de dança/animador cultural contribuir para que os alunos tenham um melhor entendimento da arte e possam melhor usufruir os espetáculos, ampliando suas experiências sensíveis, adquirindo, como diz Marques (1991), a capacidade de discriminar os elementos intrínsecos à própria dança, assim como, de adentrar o mundo da obra de arte, a vivenciando como um todo.

Nesse ponto em especial encontram-se as reflexões centrais de nosso artigo.

Movimentos finais, mesmo que provisórios: colhendo indicadores para continuar a dançar

a) O espaço da técnica

Historicamente, a maneira mais fácil de lidar com este componente indeterminado, múltiplo e qualitativo (e, portanto, não universalizante) da arte foi escolarizá-la: ora imprimindo ao ensino de Arte/Dança caráter de cópia alienada com valorização excessiva do fazer artístico mecânico e pré-determinado, ora creditando às práticas “espontâneas”, sem fundamentação teórica e/ou técnica, todo o conteúdo da educação artística (Marques, 1999, p 53).

As críticas ao excessivo rigor técnico do balé clássico não podem significar que esse aspecto mereça ser abandonado. Crer que um processo de dança-educação possa prescindir das dimensões historicamente construídas da linguagem, parece-nos pouco contribuir para seu desenvolvimento e arrisca apontar para seu esvaziamento enquanto manifestação cultural. Investir na “emoção” sem o embasamento dos modos qualitativos da ação parece sugerir uma dicotomia anacrônica e ultrapassada entre técnica e sensibilidade.

Podemos perceber hoje a retomada do ensino do balé no meio da dança, como a retomada da educação pela arte da dança em si, a apropriação da técnica corporal. Será que esse retorno se deve ao rumo desenfreado que a dança tomou nas décadas de 1960/ 1970, em direção à liberdade de criação?

Esta tentativa de resgatar a técnica codificada pelo balé clássico poderia ser entendida como um eco restaurador de ideais e conceitos outrora valorizados e hoje novamente idealizados a fim de estabilizar o instável, periodicizar o efêmero, regrar o indeterminado, unificar o múltiplo. O ensino do balé clássico como base traz consigo resquícios e marcas, valores e significados de uma cultura do século XVIII que acabam sendo incorporados pelo mundo da dança em pleno final do século XX. (Marques, 1999, p 68).

Um processo de dança-educação deve sim permitir aos alunos dialogarem criticamente com os referenciais técnicos construídos, permitindo-lhes o desenvolvimento de consciência acerca das mais diversas possibilidades de movimentação corporal. Se desejarmos contribuir para a formação de produtores de cultura, e não só reprodutores, tal processo não pode prescindir de compreensão acerca dos diversos sentidos e significados que a produção obteve no decorrer da história.

Assim, tememos tanto que os projetos de educação ligados à dança sejam meras reproduções de uma tradição escolástica a ser questionada quanto que, descambando para seu oposto, sejam meras iniciativas inconseqüentes e pouco conscientes de permissão condicionada de movimentação corporal, pouco pautadas na própria história de construtos da linguagem.

No ensino da dança, não podemos desvalorizar o espaço da técnica e de seus referenciais teóricos, cedendo espaço para o espontaneísmo, sustentado em uma compreensão simplista de uma suposta liberdade de expressão. Como se conceber liberdade se não se instrumentalizar o corpo em sua totalidade para ser explorado no seu universo criativo? Não adianta propugnar o “ser livre para criar” se não se contribui para ampliar as potencialidades de se expressar essa liberdade através do corpo.

Por outro lado, as revoluções estéticas da dança foram didaticamente sistematizadas pelos artistas, transformando-se em metodologias na maioria das vezes sem nenhum aspecto inovador. A formalização dos processos criativos da dança muitas vezes leva o artista à criação de práticas pedagógicas que não correspondem às propostas estéticas de seus trabalhos inovadores, perpetuando-se formas tradicionais de transmissão de conhecimento. O processo de transmissão imposto pela escola é normalmente rígido e dominado por normas externas à arte, cristalizando e neutralizando aquilo que se acreditava revolucionário.

Assim sendo, temos que tomar cuidado com o espaço da técnica em nossas propostas de animação cultural: nem abandoná-la, nem reificá-la.

Laban[3], já no começo do século XX, pensava e desenvolvia uma proposta de dança educativa como um elo entre o conhecimento intelectual e a criatividade, permitindo que o aluno percebesse com maior clareza as sensações contidas na expressão dramática do indivíduo, quer na dança teatral ou na comunitária. Para Laban, a partir da compreensão das qualidades de movimento, implícitas em qualquer ação humana, o aluno pode ser educado através do movimento, através da linguagem da dança.

Laban nos trouxe grandes contribuições para pensar a educação através da dança: referenciais corporais que instrumentalizaram um processo de criação menos espontaneísta e potencialmente mais consciente. Nas pesquisas de Laban, o estudo e a compreensão da dança podem ir muito além do ato de apreciar e fazer dança, subjaz uma nova postura de vida, uma nova relação do sujeito consigo mesmo e com o mundo.

b) O conceito de produção

Obviamente que desejamos em nossos projetos a formação de indivíduos que se entendam enquanto produtores de cultura, mas não devemos acreditar que o ato de produzir refere-se somente a dançar. Com isso estamos dizendo que os projetos também devem entender que os indivíduos são produtores quando conseguem dialogar criticamente enquanto platéia com as mais diferentes possibilidades de dançar, com os diversos arranjos da dança, o que significa também educar o público para a diversidade, dialogando com os diferentes sentidos e significados que o ato de dançar ocupa na sociedade contemporânea.

Mais uma vez tocamos na questão do desenvolvimento de metodologias de ensino que não reproduzam o que comumente encontramos no mercado, o que transforma os projetos de educação pela e para a dança em reproduções das companhias profissionais organizadas, o que faz com que o principal objetivo, motivo mesmo de análise de seu sucesso, seja o enquadramento de algum “bailarino” em grupos de sucesso nacional ou internacional.

Um projeto de dança na perspectiva da animação cultural, antes de preocupações com a formação do bailarino profissional, deve procurar despertar em seus alunos o conhecimento acerca do gosto e do prazer de dançar, que tanto pode ser sentido no próprio corpo, quanto na ampliação de suas possibilidades de assistir outros corpos dançando.

c) Articulação entre teoria e prática

A dissociação entre o artístico e o educativo implícita na terminologia utilizada por professores de dança só vem reforçando a concepção de ensino de dança como meio, recurso, instrumento. Ou seja, ao enfatizarmos que a dança na escola é “diferente” (e por isto ela é “criativa”, “educativa”, “expressiva”), pois “não estamos interessados em formar artistas”, acabamos também negando a presença da dança na escola como área de conhecimento em si, ou seja, como arte. (Marques, 2003, p.142).

Devemos estar constantemente atentos à necessidade de melhor compreender teoricamente por onde devem caminhar nossos esforços de intervenção, buscar novas abordagens metodológicas que coloquem em xeque mesmo o que está em vigor. O fato de um projeto de dança estar organizado em uma determinada comunidade de baixa renda, por si só não garante que ele seja “social”, efetivo e/ou de qualidade, podendo ser antes um artifício para que não pensemos profundamente na necessidade de redimensionar o ensino da dança.

O conhecimento em dança articula-se com o conhecimento através da dança, problematizando e abrindo o leque de possibilidades de relações entre arte, ensino, aluno e sociedade. Sem conhecimento em dança, “ao contrário do que nos dita o senso comum, as aulas de dança podem ser verdadeiras prisões dos sentidos, das idéias, dos prazeres, da percepção e das relações que podemos traçar com o mundo” (Marques, 2003, p. 26).

Segundo Eisner (1999), um currículo de ensino da arte não pode prescindir nem de estrutura nem de mágica. Para ele não há arte sem mágica e não há acesso sem estrutura. Defende um currículo de arte-educação que contenha: a produção, a crítica, a História e a Estética da arte. Estas disciplinas correspondem às quatro formas como nos relacionamos com a arte: fazemos arte, vemos arte, entendemos o lugar da arte na cultura através dos tempos e fazemos julgamentos sobre suas qualidades.

Muito interessante é também a Proposta Triangular, concebida por Ana Mae Barbosa, fundamentada em três vertentes: o fazer (a criação), a leitura imagética (compreensão) e a história da arte (contextualização)[4].

d) A questão das políticas públicas

Por fim, é necessário que questionemos até mesmo a forma como se organizam os investimentos governamentais. Na cidade do Rio de Janeiro são fartos os incentivos da prefeitura à dança e nos parece interessante que os poderes públicos invistam no desenvolvimento da linguagem. Mas isso tem significado ampliação do público e dos praticantes da dança? Isso tem trazido desdobramentos para um conjunto maior da população? Não deveria a prefeitura estar preocupada em também alcançar um cômputo maior da população? Essas são questões que precisam ser urgentemente encaradas.

Fecha-se (momentaneamente) a cortina

Não devemos ser inocentes no que se refere à massificação e à manipulação dos indivíduos e da arte pela indústria cultural. Ao mesmo tempo, não podemos também ser lineares ao imaginar que não existem saídas, tampouco ingênuos a ponto de pensar em identidade cultural como sinônimo de estagnação de tradições. A transformação cultural é fruto da própria evolução do ser humano em sociedade. É impossível negar a pluralidade de origens da nossa cultura, miscigenação de corpos, idéias e fazeres. É fundamental o reconhecimento do multiculturalismo como algo impregnado e impregnante na nossa cultura e conseqüentemente na nossa fruição, análise e criação artísticas.

Essa diversidade que é integrante e se integrou à nossa cultura é saudável na medida em que dela retiramos aquilo que nos renova enquanto artistas, enquanto povo, enquanto seres humanos. Contudo, é primordial a reflexão e o questionamento quanto aos interesses que permeiam esses processos de veiculação e de criação artísticas.

A compreensão dessa pluralidade e dessa dinâmica nos leva a crer que a produção de um objeto estético, apesar de ser um ato solitário (Rilke, 1953), se diversifica e, em certa medida, torna-se também um ato coletivo. Amplia-se o leque de possibilidades de criação. Acreditamos que o entendimento dessa dinâmica cultural possa contribuir para reduzir a desigualdade.

Devemos sempre pensar modos de vida mais justos e livres. Na arte, questionar seus acessos, seus espaços fechados em lacres de cifrões. Poucos são aqueles que podem plenamente fruí-la ou que têm possibilidades até mesmo de entender profundamente sua importância. Muitas vezes, é mesmo interpretada como algo secundário, sem rosto, sem alma.

Já protestava Artaud[5], no começo do século XX, contra a idéia de isolamento entre vida e arte/cultura, como se a arte/cultura não fosse um meio refinado de compreender e exercer a vida. Para o grande pensador da arte da encenação, o mais urgente não seria defender uma cultura cuja existência nunca salvou qualquer ser humano de ter fome, mas extrair daquilo que se chama arte/cultura idéias cuja força viva é idêntica à da fome.

É necessário pensar a arte sim. É necessário um retorno histórico para o resgate crítico de sua existência. É necessário refletir sobre o que a arte tem haver com o repensar da vida, da liberdade e de nossos deveres enquanto sucessores de uma herança histórica e construtores do futuro das novas gerações.

O que apontamos neste artigo são algumas questões que julgamos que não devem passar despercebidas em nossos esforços para pensar a arte e a vida; e a arte enquanto vida; e a vida enquanto arte.

Referências bibliográficas

ALVES, Rodrigo. A arte de ensinar a arte. Veredas, Rio de Janeiro, ano 8, n.56, p.16-21, fev./2003.

ARTAUD, Antonin. O teatro e seu duplo. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

EISNER, Elliot. Estrutura e mágica no ensino da arte. In: BARBOSA, Ana Mae (org.). Arte-Educação:leitura no subsolo. São Paulo: Cortez, 1999.

GARAUDY, Roger. Dançar a vida. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.

LABAN, Rudolf. Dança educativa moderna. São Paulo: Ícone, 1990

MARQUES, Isabel A. Coreologia: um estudo sobre sua adequação nos cursos de formação de professores em dança. Revista da Faculdade de Educação, São Paulo, v.17, n.1/2, p.148-183, 1991.

MARQUES, Isabel A. Ensino de dança hoje. São Paulo: Cortez, 1999.

MARQUES, Isabel A. Dançando na escola. São Paulo: Cortez, 2003.

MELO, Victor Andrade de. Educação estética e animação cultural. Licere, Belo Horizonte, v.5, n.1, p.101-112, 2002.

MELO, Victor Andrade de. A cidade, o cidadão, o lazer e a animação cultural. Rio de Janeiro, 2003. mimeo.

RILKE, R. M. Cartas a um jovem poeta. Porto Alegre: Globo, 1953.



[1] . Maiores informações sobre o grupo podem ser encontradas em http://www.lazer.eefd.ufrj.br.

[2] . Maiores informações podem ser obtidas nos estudos de Melo (2002, 2003).

[3] . Maiores informações podem ser obtidas no livro de Laban (1990).

[4] . Um boa discussão sobre o ensino da arte e suas tendências no Brasil, podem ser obtidas no artigo de Alves (2003).

[5] . Maiores informações podem ser obtidas em Artaud (1999).