Vamos pensar melhor nosso papel como artistas com esse exelente texto dos professores:
Profa. Ms. Maria Inês Galvão Souza
Profa. Ms. Patrícia Gomes Pereira
Prof. Dr. Victor Andrade de Melo
RESUMO
Entre nossas propostas de trabalho está a de melhor compreender os mecanismos e as peculiaridades da animação cultural. Inserido nesse esforço, temos nos dedicado a investigar as especificidades das diferentes linguagens artísticas. Nosso objetivo nesse artigo é apresentar reflexões sobre a incorporação da dança em projetos de animação cultural, a partir de um olhar crítico sobre o próprio estágio de organização da arte. Mais do que pensar um processo de educação pela dança, estamos interessados em refletir sobre a educação para a dança e seus desdobramentos, já que consideramos que essa tem sido uma dimensão menos discutida no âmbito do campo acadêmico da Dança e da Educação Física, bem como nos esforços de pensar o campo do lazer.
Vai começar o espetáculo (toca a campainha)
“Só poderia acreditar em um deus que soubesse dançar”
F. Nietzsche
O grupo de pesquisa “Lazer e Minorias Sociais” está organizado a quatro anos na Escola de Educação Física e Desportos da Universidade Federal do Rio de Janeiro, envolvendo acadêmicos e profissionais de vários estágios de formação, de diferentes instituições acadêmicas. Seu objetivo é desenvolver estudos, investigações e projetos de intervenção que contribuam para aprimorar o conhecimento sobre temáticas relacionadas com a problemática do lazer e sua presença e contribuição para com as minorias sociais, tendo em vista cooperar para a construção de uma sociedade mais justa, sem preconceitos, estereótipos e discriminações das mais diferentes ordens.
Entre nossas propostas de trabalho está a de melhor compreender, articulando teoria e prática, os mecanismos e as peculiaridades da animação cultural, entendida enquanto uma intervenção pedagógica, uma tecnologia educacional que possa contribuir para reverter o quadro de privatização e midialização da cultura notáveis no atual estágio da sociedade, fruto inclusive do avanço tecnológico e do quadro sócio-político-econômico.
Inserido nesse esforço, temos nos dedicado a investigar as diferentes linguagens artísticas, suas peculiaridades e as possibilidades de serem incorporadas em projetos de animação cultural. Procuramos identificar as barreiras e os limites que dificultam sua fruição por indivíduos de diferentes extratos sociais, buscando novas metodologias de trabalho, tendo em vista reverter esse quadro e potencializar um possível olhar sensível de cada ser humano, vislumbrando a promoção de transformações sociais.
No que se refere à dança, temos já estruturados dois projetos de pesquisa e um de intervenção. Num desses projetos, “Afetos em dança”, investigamos a linguagem coreográfica e a comunicação com o público. Buscamos identificar possíveis parâmetros norteadores da prática da composição coreográfica, selecionando assim elementos que possam embasar um processo de educação para a dança, que possa permitir um acesso mais efetivo e constante da população a tal manifestação cultural.
No outro projeto, “Análise crítica dos projetos sociais de dança na cidade do Rio de Janeiro”, investigamos as peculiaridades do desenvolvimento de projetos de dança em comunidades de baixa renda no município, levantando indicadores que possam contribuir para potencializar tais iniciativas.
O projeto de intervenção, “Quartas-feiras da improvisação”, procura articular as reflexões de pesquisa com uma prática conseqüente do ensino da dança, a partir de novos olhares. Entendemos a prática da improvisação como uma das possibilidades de promover uma discussão sobre a dança no âmbito do lazer.
O nosso intuito nesse artigo é apresentar algumas de nossas reflexões construídas no decorrer dessa trajetória. Nosso objetivo é pensar a dança-educação e a incorporação da linguagem em projetos de animação cultural, a partir de um olhar crítico sobre o próprio estágio de organização da arte no momento atual. Mais do que pensar um processo de educação pela dança, estamos interessados em refletir sobre a educação para a dança e seus desdobramentos em projetos de animação cultural, já que consideramos que essa tem sido uma dimensão menos discutida no âmbito do campo acadêmico da Dança e da Educação Física, bem como nos esforços de pensar o campo do lazer.
Este artigo não se trata de uma “obra fechada”, pronta, mas sim “estudos de movimento” em plena efervescência de criação, carregando logo a marca da provisoriedade. Como numa prática de montagem coreográfica - que relaciona as diversas linguagens, imagens, o contexto social, o domínio corporal, o intelectual e o sensível - este artigo busca dialogar com vários aspectos, considerando que o conhecimento, e as obras de arte, estão sempre em transformação, como uma “obra aberta”, um mosaico de possibilidades de configurações.
O que apresentamos são “improvisações”, da forma como as compreende a dança contemporânea, fundamentais não só na construção de coreografias originais, que busquem novas possibilidades de movimentações corporais, como também de novos sentidos e significados para o ato de dançar. Não trata este artigo, assim, de construções inconseqüentes ou inconscientes, mas de passos introdutórios de um processo de reflexão para a consolidação de uma intervenção embasada, sempre em diálogo dialético com uma teoria em construção.
Tocada a terceira campainha, comecemos o nosso espetáculo!
Ato 1 – O que é a dança hoje?
Reconhecemos o nascimento da dança já entre as sociedades primitivas, mas a sua estruturação, enquanto campo sistematizado de conhecimento e espetáculo, nos remete principalmente ao século XVII, com o desenvolvimento do balé clássico.
A dança nos seus primórdios era uma manifestação coletiva, construída no âmbito das tradições da cultura popular. Posteriormente, quando passa a ocupar, na forma de balé, os salões das cortes, principalmente francesa e italiana, vemos um processo paulatino de separação dessa prática do conjunto geral da população, a partir da construção de novos sentidos e significados interessantes a um projeto de elitização.
A dança, que outrora era popular e que não estava dissociada da vida do povo, nesta nova conformação, passa a ser concebida como divertimento da aristocracia cortesã, assim como um dos elementos para afirmar o prestígio e o poder deste grupo dominante.
Obviamente que isso não significou que a população deixou de dançar. Houve, e até hoje há, uma constante inter-relação, que deve ser compreendida à luz de um processo de circularidade cultural. Devemos lembrar, inclusive, que é justamente a partir dos passos, movimentos e gestos das danças populares que o balé iniciou seu desenvolvimento, a partir do entabular de um processo de refinamento aristocrático e de alta complexificação técnica. Contudo, não podemos negar que se criaram mecanismos de diferenciação, de valorização, destinando às danças das elites a preponderância na consideração de "melhor", mais "bonita" ou "mais adequada" forma de dançar.
No final do século XVII, quando o balé sai dos salões da corte e passa a ser apresentado em palcos italianos, esse quadro pouco se modifica: grande parte da população permanece ainda distante da dança teatral. Na verdade, além de ficar distanciada do povo, a arte da dança afasta-se de sua significação humana original. É nesta época que melhor se estrutura o método acadêmico de dança, com suas “regras invioláveis”. Valorizava-se a clareza e a harmonia das formas, a perfeição técnica, a geometrização do movimento. Não podemos esquecer que o balé clássico desenvolveu-se respaldado pelo pensamento lógico matemático que predominava na época de sua codificação. Nesse contexto, o estudo do movimento muitas vezes tendeu a ficar desconectado da emoção.
Notamos que com a criação do balé clássico, a dança passa a ser oferecida prioritariamente como forma de espetáculo, de consumo passivo, tendencialmente restrita a grupos sociais pertencentes à elite econômica. Como outras manifestações artísticas, a dança teatral também se estrutura como elemento de status e distinção para poucos que podem praticar e/ou consumir espetáculos, ainda mais que seus códigos se afastavam de uma construção coletiva.
Os rígidos cânones do balé clássico, apesar de terem sido questionados já no século XVIII por Jean-Georges Noverre, que propôs reformas na encenação e na formação dos bailarinos, objetivando resgatar a expressividade do movimento e a essência do ato de dançar, foram modificados somente no início do século XX, com o movimento da Dança Moderna. Ocorrem assim mudanças sensíveis em relação ao modo de pensar e praticar a dança.
Segundo Garaudy (1980, p.175) é com a dança moderna que se resgata o seu lugar “como expressão condensada da vida e da cultura, no coração da vida e na raiz da cultura”. Constroem-se outros sentidos e significados, busca-se não só uma nova forma de dançar, bem como novas intencionalidades para o ato de dançar, em movimentos que supostamente pretendem tornar a dança mais próxima do público, menos artificial, menos escolástica, questionando-se o rígido espaço ocupado pela técnica do balé clássico, preconizando-se a emoção e a relação da arte com a vida como fatores fundamentais a serem recuperados.
Com a contemporaneidade, há um processo de rupturas e permanências no que se refere à dança moderna e ao balé clássico. Trouxe-se para a dança, assim como para outras manifestações artísticas, o desafio do desenvolvimento de novas possibilidades para a linguagem, a busca de desconstrução do construído e a tentativa de estabelecimento de diálogos entre as linguagens, já embrionariamente observados nos movimentos das vanguardas artísticas européias no início do século XX (por exemplo, no futurismo e no surrealismo).
Se tais processos de desconstrução e construção e de diálogos interlinguagens são de fundamental importância, cremos, contudo, que a dança, assim como outras artes, enfrenta problemas similares na contemporaneidade. O que é dançar nos dias atuais? O que caracteriza a especificidade da linguagem?
Quando se questiona o rigor técnico da arte acadêmica, isso pode ser confundido com a não valorização da importância da investigação de elementos estruturadores da linguagem. Corre-se o risco de esvaziar a arte, dando espaços para o surgimento de um grande número de experiências confusas, referendadas por uma tendência de valorização apriorística do (supostamente) novo pelo novo, ora mais ora menos bem intencionadas. Vale lembrar que arte sempre tem algo (ou muito) de técnica e que a valorização da emoção e das subjetividades não pode significar o abandono dessa dimensão fundamental, sem a qual corremos o risco de uma construção sem parâmetros, pautada exclusivamente nas articulações políticas do campo, sem critérios claros de julgamento.
Um olhar sobre a dança na atualidade nos permite levantar algumas reflexões. Ao questionar os rígidos cânones do balé clássico, e por outro lado, na verdade, criar outros padrões restritos de possibilidades estilísticas de movimentos, apenas diferentes daqueles anteriores, não estaria a dança contemporânea a construir uma nova escola (o que indicaria uma certa uniformização de propostas coreográficas)? Uma total abertura de experimentações, a ponto de se distanciar da pesquisa dos elementos específicos da linguagem, poderia levar a construção de um sem-número de experiências sem consistência (o que daria espaços para "aventureiros")? Estaríamos encontrando um equilíbrio necessário para ver avançar as propostas de dança? O diálogo com outras linguagens tem ocorrido de forma fértil e construtiva ou tem antes apontado para o risco da diluição completa da linguagem original sem a construção de uma alternativa, apontando um processo de inovação pela simples inovação, montado para chocar o público? Imerso em tantas tentativas de chocar, o público pouco reage, até mesmo pela falta de conhecimento, passando a absorver o velho como novo. Não são poucos os apelos ao humor explícito, barato, fácil, que acaba por afastar a arte das sutilezas metafóricas da ironia que permite pensar.
Aliás, já que tocamos no assunto, quem é hoje o público de dança?
Ato 2 – Quem é o público?
Em certo sentido, grande parte da população continua a dançar no seu cotidiano e podemos, sem medo de errar, afirmar que é uma das linguagens que maior potencial tem de desenvolvimento, tendo em vista o espaço que sempre ocupou na história social e mesmo sua possibilidade operacional de implementação. Para dançar, precisamos somente de música, em certo sentido, pois nem a música é completamente imprescindível.
Não podemos esquecer também que há estímulos constantes da indústria cultural para o dançar. Basta lembrarmos das muitas "coreografias" que acompanham os produtos musicais por ela difundidos (coreografias de axé, de funk e dos grupos de pagode). Podemos até questionar a qualidade desses construtos (seu vocabulário corporal restrito e pobre, a ausência de liberdade de criação e expressão dos corpos, já que o público fica submetido à reprodução de certos modelos, parecendo mais um bando de robôs), mas não podemos negar a sua penetrabilidade. A sexualidade feminina muitas vezes é exacerbada, a tal ponto de a mulher se tornar um grande conjunto de partes do corpo expostas como “carnes”. Numa amostra gratuita, onde a concorrência pelo minuto do sucesso nas telas de televisão é o objetivo principal, todos dançam da mesma forma, como clones simbólicos de um momento de crise da identidade cultural.
Curiosamente, mas não contraditoriamente, se vemos um certo modelo linear e unidimensional de dança ocupar espaço por entre a população, assistimos também a platéias reduzidas nos espetáculos de dança na cidade do Rio de Janeiro ou, sendo mais precisos, um público restrito que se repete.
Efetivamente os espetáculos de dança não fazem parte das opções usuais de lazer de grande parte da população. Na verdade, aliás, quando falamos em espetáculo de dança, vem logo no imaginário da grande maioria a estilística do balé clássico. Evidentemente, este é um estilo que produz encantamento em função dos movimentos virtuosos apresentados pelos bailarinos, seus temas fantasiosos, seus belíssimos figurinos e cenários. Sem esquecer, principalmente, que a tradição de sua existência, que atravessa mais de quatro séculos, perpetua-se no imaginário coletivo. Já os espetáculos de dança contemporânea, que vêm ocupando espaço no cenário da dança em todo país e no exterior, tendo em vista seu poder de afetação e mudança de consciência, ainda encontram-se distanciados do lazer das camadas populares. Obviamente que não podemos também deixar de considerar isso à luz do contemporâneo processo de tensão no âmbito da cultura e da ação da indústria cultural.
Considerando tal quadro, apresentamos as seguintes questões:
* Estará o mundo da dança preocupado realmente com a ampliação/formação de platéia e a difusão dos "avanços" da linguagem, ou esse campo artístico está implícita ou explicitamente satisfeito com sua organização atual?
* Existem iniciativas de construção processual de uma educação para a dança ou continua-se a acreditar que o oferecimento de espetáculos esporádicos é o suficiente?
* Os projetos "sociais" de dança estão preocupados em educar a sensibilidade de seu público-alvo para o consumo ativo e crítico dos espetáculos coreográficos (o que por certo vai passar pela concepção de tornar os indivíduos produtores de cultura, não só quando descobrem que podem dançar de formas diferenciadas, mas também quando se desperta sua possibilidade de dialogarem criticamente com o produzido) ou pretendem seguir os mesmos modelos de formação de bailarinos, comemorando quando conseguem inserir alguns de seus membros nas companhias de dança estabelecidas no Brasil e no exterior?
Parece que se a dança contemporânea (re)incorporou de forma explícita e alvissareira o "popular" em suas construções, o povo continua de fora da dança, desconhecendo todas as possibilidades que a linguagem pode lhe oferecer.
Se estivermos certos nessas considerações, isso seria um problema dos professores, coreógrafos ou dos críticos e pensadores? Quem pensa a dança hoje?
Ato 3 – Quem pensa a dança?
Como se configura hoje um campo de pensamentos, dentro e fora das universidades, ligado à dança? Somos instados a reconhecer que, comparativamente com outras manifestações artísticas (como o cinema, o teatro e as artes plásticas), podemos identificar que a dança ainda não parece ter alcançado o mesmo grau de profundidade em suas reflexões.
Possuímos no Brasil poucos cursos de graduação e pós-graduação, poucos grupos de estudo estruturados, poucas publicações. A Associação Brasileira de Artes Cênicas (Abrace) possui um grupo de trabalho ligado à produção de pesquisas em dança, entretanto, notadamente estas se debruçam mais sobre a questão da produção de linguagem cênica do que explicitam preocupações com a arte-educação. Com poucos fóruns de discussão, tende-se à reprodução de discursos semelhantes, proferidos por um número restrito de “intelectuais”.
Isso pode certamente trazer reflexos no próprio desenvolvimento da linguagem. Se isto estiver aproximadamente correto, podemos supor que temos poucas tensões de natureza intelectual no campo, o que acaba pouco contribuindo para o avanço qualitativo da arte da dança. Isso pode ser identificado até mesmo nas críticas de jornais, que deveriam ser compreendidas como de fundamental importância para o diálogo com o público.
O que dizer então das reflexões ligadas à formação de platéia e dos projetos educacionais ligados à dança? Não nos parece absurdo dizer que, no contexto de nossa sociedade, onde os prazeres também são hierarquizados, esse deveria ser um de nossos maiores desafios: precisamos pensar pressupostos teóricos e considerações críticas que possam nos permitir colher indicadores de incorporação da dança em projetos para o grande público; metodologias que balizem a nossa ação enquanto animadores culturais que pretendem ter a dança como uma de suas estratégias de intervenção pedagógica. Afinal, o exercício de uma prática reflexiva, que se desenvolve de forma democrática, se mostra como potência para a formação do apreciador crítico da linguagem da dança.
O conhecimento e a apreensão de referenciais teóricos da dança como padrões avaliativos podem levar o grande público a um maior envolvimento afetivo e ao consumo crítico da arte, não só de agora, mas também do futuro. O espectador deixaria de realizar apenas uma catarse emocional e se envolveria com o objeto artístico apreciado também de forma racional. Como expõe Eisner (1999, p.91):
O que a arte proporciona é uma contribuição ampla ao desenvolvimento e às experiências humanas. Primeiramente, a arte, isto é, as imagens e eventos cujas propriedades fazem brotar formas estéticas de sentimentos, é um dos importantes meios pelos quais as potencialidades da mente humana são trazidas à tona. Nossas capacidades intelectuais tornam-se habilidades intelectuais à medida que damos a estas capacidades oportunidade de funcionar: o tipo de raciocínio necessário para vermos o que é sutil e complexo; para aprender como perceber formas de maneira que suas estruturas expressivas toquem nossa imaginação e emoção; para tolerar as ambigüidades enigmáticas da arte. Longe de ser uma atividade negligente, nosso compromisso com a arte nos faz empregar nossas mais sutis formas de percepção e contribui para o desenvolvimento de algumas de nossas mais complexas habilidades cognitivas.
É papel fundamental do professor de dança/animador cultural contribuir para que os alunos tenham um melhor entendimento da arte e possam melhor usufruir os espetáculos, ampliando suas experiências sensíveis, adquirindo, como diz Marques (1991), a capacidade de discriminar os elementos intrínsecos à própria dança, assim como, de adentrar o mundo da obra de arte, a vivenciando como um todo.
Nesse ponto em especial encontram-se as reflexões centrais de nosso artigo.
Movimentos finais, mesmo que provisórios: colhendo indicadores para continuar a dançar
a) O espaço da técnica
Historicamente, a maneira mais fácil de lidar com este componente indeterminado, múltiplo e qualitativo (e, portanto, não universalizante) da arte foi escolarizá-la: ora imprimindo ao ensino de Arte/Dança caráter de cópia alienada com valorização excessiva do fazer artístico mecânico e pré-determinado, ora creditando às práticas “espontâneas”, sem fundamentação teórica e/ou técnica, todo o conteúdo da educação artística (Marques, 1999, p 53).
As críticas ao excessivo rigor técnico do balé clássico não podem significar que esse aspecto mereça ser abandonado. Crer que um processo de dança-educação possa prescindir das dimensões historicamente construídas da linguagem, parece-nos pouco contribuir para seu desenvolvimento e arrisca apontar para seu esvaziamento enquanto manifestação cultural. Investir na “emoção” sem o embasamento dos modos qualitativos da ação parece sugerir uma dicotomia anacrônica e ultrapassada entre técnica e sensibilidade.
Podemos perceber hoje a retomada do ensino do balé no meio da dança, como a retomada da educação pela arte da dança em si, a apropriação da técnica corporal. Será que esse retorno se deve ao rumo desenfreado que a dança tomou nas décadas de 1960/ 1970, em direção à liberdade de criação?
Esta tentativa de resgatar a técnica codificada pelo balé clássico poderia ser entendida como um eco restaurador de ideais e conceitos outrora valorizados e hoje novamente idealizados a fim de estabilizar o instável, periodicizar o efêmero, regrar o indeterminado, unificar o múltiplo. O ensino do balé clássico como base traz consigo resquícios e marcas, valores e significados de uma cultura do século XVIII que acabam sendo incorporados pelo mundo da dança em pleno final do século XX. (Marques, 1999, p 68).
Um processo de dança-educação deve sim permitir aos alunos dialogarem criticamente com os referenciais técnicos construídos, permitindo-lhes o desenvolvimento de consciência acerca das mais diversas possibilidades de movimentação corporal. Se desejarmos contribuir para a formação de produtores de cultura, e não só reprodutores, tal processo não pode prescindir de compreensão acerca dos diversos sentidos e significados que a produção obteve no decorrer da história.
Assim, tememos tanto que os projetos de educação ligados à dança sejam meras reproduções de uma tradição escolástica a ser questionada quanto que, descambando para seu oposto, sejam meras iniciativas inconseqüentes e pouco conscientes de permissão condicionada de movimentação corporal, pouco pautadas na própria história de construtos da linguagem.
No ensino da dança, não podemos desvalorizar o espaço da técnica e de seus referenciais teóricos, cedendo espaço para o espontaneísmo, sustentado em uma compreensão simplista de uma suposta liberdade de expressão. Como se conceber liberdade se não se instrumentalizar o corpo em sua totalidade para ser explorado no seu universo criativo? Não adianta propugnar o “ser livre para criar” se não se contribui para ampliar as potencialidades de se expressar essa liberdade através do corpo.
Por outro lado, as revoluções estéticas da dança foram didaticamente sistematizadas pelos artistas, transformando-se em metodologias na maioria das vezes sem nenhum aspecto inovador. A formalização dos processos criativos da dança muitas vezes leva o artista à criação de práticas pedagógicas que não correspondem às propostas estéticas de seus trabalhos inovadores, perpetuando-se formas tradicionais de transmissão de conhecimento. O processo de transmissão imposto pela escola é normalmente rígido e dominado por normas externas à arte, cristalizando e neutralizando aquilo que se acreditava revolucionário.
Assim sendo, temos que tomar cuidado com o espaço da técnica em nossas propostas de animação cultural: nem abandoná-la, nem reificá-la.
Laban, já no começo do século XX, pensava e desenvolvia uma proposta de dança educativa como um elo entre o conhecimento intelectual e a criatividade, permitindo que o aluno percebesse com maior clareza as sensações contidas na expressão dramática do indivíduo, quer na dança teatral ou na comunitária. Para Laban, a partir da compreensão das qualidades de movimento, implícitas em qualquer ação humana, o aluno pode ser educado através do movimento, através da linguagem da dança.
Laban nos trouxe grandes contribuições para pensar a educação através da dança: referenciais corporais que instrumentalizaram um processo de criação menos espontaneísta e potencialmente mais consciente. Nas pesquisas de Laban, o estudo e a compreensão da dança podem ir muito além do ato de apreciar e fazer dança, subjaz uma nova postura de vida, uma nova relação do sujeito consigo mesmo e com o mundo.
b) O conceito de produção
Obviamente que desejamos em nossos projetos a formação de indivíduos que se entendam enquanto produtores de cultura, mas não devemos acreditar que o ato de produzir refere-se somente a dançar. Com isso estamos dizendo que os projetos também devem entender que os indivíduos são produtores quando conseguem dialogar criticamente enquanto platéia com as mais diferentes possibilidades de dançar, com os diversos arranjos da dança, o que significa também educar o público para a diversidade, dialogando com os diferentes sentidos e significados que o ato de dançar ocupa na sociedade contemporânea.
Mais uma vez tocamos na questão do desenvolvimento de metodologias de ensino que não reproduzam o que comumente encontramos no mercado, o que transforma os projetos de educação pela e para a dança em reproduções das companhias profissionais organizadas, o que faz com que o principal objetivo, motivo mesmo de análise de seu sucesso, seja o enquadramento de algum “bailarino” em grupos de sucesso nacional ou internacional.
Um projeto de dança na perspectiva da animação cultural, antes de preocupações com a formação do bailarino profissional, deve procurar despertar em seus alunos o conhecimento acerca do gosto e do prazer de dançar, que tanto pode ser sentido no próprio corpo, quanto na ampliação de suas possibilidades de assistir outros corpos dançando.
c) Articulação entre teoria e prática
A dissociação entre o artístico e o educativo implícita na terminologia utilizada por professores de dança só vem reforçando a concepção de ensino de dança como meio, recurso, instrumento. Ou seja, ao enfatizarmos que a dança na escola é “diferente” (e por isto ela é “criativa”, “educativa”, “expressiva”), pois “não estamos interessados em formar artistas”, acabamos também negando a presença da dança na escola como área de conhecimento em si, ou seja, como arte. (Marques, 2003, p.142).
Devemos estar constantemente atentos à necessidade de melhor compreender teoricamente por onde devem caminhar nossos esforços de intervenção, buscar novas abordagens metodológicas que coloquem em xeque mesmo o que está em vigor. O fato de um projeto de dança estar organizado em uma determinada comunidade de baixa renda, por si só não garante que ele seja “social”, efetivo e/ou de qualidade, podendo ser antes um artifício para que não pensemos profundamente na necessidade de redimensionar o ensino da dança.
O conhecimento em dança articula-se com o conhecimento através da dança, problematizando e abrindo o leque de possibilidades de relações entre arte, ensino, aluno e sociedade. Sem conhecimento em dança, “ao contrário do que nos dita o senso comum, as aulas de dança podem ser verdadeiras prisões dos sentidos, das idéias, dos prazeres, da percepção e das relações que podemos traçar com o mundo” (Marques, 2003, p. 26).
Segundo Eisner (1999), um currículo de ensino da arte não pode prescindir nem de estrutura nem de mágica. Para ele não há arte sem mágica e não há acesso sem estrutura. Defende um currículo de arte-educação que contenha: a produção, a crítica, a História e a Estética da arte. Estas disciplinas correspondem às quatro formas como nos relacionamos com a arte: fazemos arte, vemos arte, entendemos o lugar da arte na cultura através dos tempos e fazemos julgamentos sobre suas qualidades.
Muito interessante é também a Proposta Triangular, concebida por Ana Mae Barbosa, fundamentada em três vertentes: o fazer (a criação), a leitura imagética (compreensão) e a história da arte (contextualização).
d) A questão das políticas públicas
Por fim, é necessário que questionemos até mesmo a forma como se organizam os investimentos governamentais. Na cidade do Rio de Janeiro são fartos os incentivos da prefeitura à dança e nos parece interessante que os poderes públicos invistam no desenvolvimento da linguagem. Mas isso tem significado ampliação do público e dos praticantes da dança? Isso tem trazido desdobramentos para um conjunto maior da população? Não deveria a prefeitura estar preocupada em também alcançar um cômputo maior da população? Essas são questões que precisam ser urgentemente encaradas.
Fecha-se (momentaneamente) a cortina
Não devemos ser inocentes no que se refere à massificação e à manipulação dos indivíduos e da arte pela indústria cultural. Ao mesmo tempo, não podemos também ser lineares ao imaginar que não existem saídas, tampouco ingênuos a ponto de pensar em identidade cultural como sinônimo de estagnação de tradições. A transformação cultural é fruto da própria evolução do ser humano em sociedade. É impossível negar a pluralidade de origens da nossa cultura, miscigenação de corpos, idéias e fazeres. É fundamental o reconhecimento do multiculturalismo como algo impregnado e impregnante na nossa cultura e conseqüentemente na nossa fruição, análise e criação artísticas.
Essa diversidade que é integrante e se integrou à nossa cultura é saudável na medida em que dela retiramos aquilo que nos renova enquanto artistas, enquanto povo, enquanto seres humanos. Contudo, é primordial a reflexão e o questionamento quanto aos interesses que permeiam esses processos de veiculação e de criação artísticas.
A compreensão dessa pluralidade e dessa dinâmica nos leva a crer que a produção de um objeto estético, apesar de ser um ato solitário (Rilke, 1953), se diversifica e, em certa medida, torna-se também um ato coletivo. Amplia-se o leque de possibilidades de criação. Acreditamos que o entendimento dessa dinâmica cultural possa contribuir para reduzir a desigualdade.
Devemos sempre pensar modos de vida mais justos e livres. Na arte, questionar seus acessos, seus espaços fechados em lacres de cifrões. Poucos são aqueles que podem plenamente fruí-la ou que têm possibilidades até mesmo de entender profundamente sua importância. Muitas vezes, é mesmo interpretada como algo secundário, sem rosto, sem alma.
Já protestava Artaud, no começo do século XX, contra a idéia de isolamento entre vida e arte/cultura, como se a arte/cultura não fosse um meio refinado de compreender e exercer a vida. Para o grande pensador da arte da encenação, o mais urgente não seria defender uma cultura cuja existência nunca salvou qualquer ser humano de ter fome, mas extrair daquilo que se chama arte/cultura idéias cuja força viva é idêntica à da fome.
É necessário pensar a arte sim. É necessário um retorno histórico para o resgate crítico de sua existência. É necessário refletir sobre o que a arte tem haver com o repensar da vida, da liberdade e de nossos deveres enquanto sucessores de uma herança histórica e construtores do futuro das novas gerações.
O que apontamos neste artigo são algumas questões que julgamos que não devem passar despercebidas em nossos esforços para pensar a arte e a vida; e a arte enquanto vida; e a vida enquanto arte.
Referências bibliográficas
ALVES, Rodrigo. A arte de ensinar a arte. Veredas, Rio de Janeiro, ano 8, n.56, p.16-21, fev./2003.
ARTAUD, Antonin. O teatro e seu duplo. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
EISNER, Elliot. Estrutura e mágica no ensino da arte. In: BARBOSA, Ana Mae (org.). Arte-Educação:leitura no subsolo. São Paulo: Cortez, 1999.
GARAUDY, Roger. Dançar a vida. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.
LABAN, Rudolf. Dança educativa moderna. São Paulo: Ícone, 1990
MARQUES, Isabel A. Coreologia: um estudo sobre sua adequação nos cursos de formação de professores em dança. Revista da Faculdade de Educação, São Paulo, v.17, n.1/2, p.148-183, 1991.
MARQUES, Isabel A. Ensino de dança hoje. São Paulo: Cortez, 1999.
MARQUES, Isabel A. Dançando na escola. São Paulo: Cortez, 2003.
MELO, Victor Andrade de. Educação estética e animação cultural. Licere, Belo Horizonte, v.5, n.1, p.101-112, 2002.
MELO, Victor Andrade de. A cidade, o cidadão, o lazer e a animação cultural. Rio de Janeiro, 2003. mimeo.
RILKE, R. M. Cartas a um jovem poeta. Porto Alegre: Globo, 1953.